¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, março 05, 2008
 
STF DECIDE HOJE ENTRE
GALILEU E A INQUISIÇÃO




Em crônicas passadas, eu me perguntava se um católico poderia ser médico. Minha conclusão era pela negativa. De repente, em nome de uma fé obsoleta, o profissional se recusa a pôr fim aos sofrimentos de um doente terminal que quer morrer. Se recusa a prescrever anticoncepcionais a mulheres que não querem privar-se dos prazeres sexuais e ao mesmo tempo não querem ter filhos. Se recusa a praticar o aborto em uma paciente que sabe que terá um filho anencéfalo. E daí pela frente.

Me perguntava também se um católico poderia ser jornalista. E minha conclusão continuava sendo pela negativa. O católico está preso aos dogmas, afirmações sem pé nem cabeça feitas pela Igreja, das quais católico algum pode discordar. Um jornalista católico tem de acreditar piamente que Cristo nasceu de uma virgem, que ressuscitou três dias após sua morte, que subiu aos céus, que Deus é três em um (o Pai, o Filho e o Paráclito), sendo que ao mesmo tempo cada um é Deus. Tem também de acreditar, embora isto ande um pouco esquecido, que ao ingerir a hóstia consagrada está ingerindo não pão sem fermento, mas a verdadeira carne de Cristo. E que, ao beber o vinho consagrado, bebe não vinho, mas o verdadeiro sangue de Cristo. Claro que tais crenças não recomendam ninguém ao exercício do jornalismo.

A pergunta hoje é outra. Pode um católico ser juiz? Pode ser ministro do Supremo Tribunal Federal? Continuo achando que não.

Os 11 ministros do STF decidirão hoje quando começa a vida e determinarão, conseqüentemente, se as células-tronco embrionárias podem ser usadas em pesquisas científicas, como determinou a Lei de Biossegurança, de 2005, ou se devem ser protegidas pela Constituição como todo ser humano. A história já começa de modo estranho: especialistas em Direito tomarão uma decisão sobre questões científicas. Os senhores ministros podem até decidir se o uso de células-tronco embrionárias é ou não é crime. Isto está dentro de suas alçadas. O que não podem é fixar por lei quando começa vida. Uma ação de inconstitucionalidade, foi apresentada pelo ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles, que faz lobby para a Igreja Católica. Pode um procurador ser católico? Diria que não.

Para começar, a questão de quando começa a vida não pode ser coisa que se submeta à votação. Não é o voto que estabelece a veracidade de um fato. E sim a ciência. Verdade não depende de estatística. Em segundo lugar, fés – quaisquer que sejam – não podem impor leis em sociedades laicas. Apesar do desejo de Roma, o Brasil não é uma teocracia. Se esses misóginos vulturinos querem legislar dentro daquele arremedo de Estado que se chama Vaticano, sintam-se à vontade. Mas que não pretendam legislar em Estado alheio.

Sabe-se que as pesquisas com células-tronco retiradas de embriões destruídos são cruciais para estudos que buscam a cura para males que vão de diabetes a lesões neurológicas. Seu potencial terapêutico vem do fato de elas serem células "genéricas", capazes de compor qualquer tecido humano. A Igreja, que um dia ameaçou com a fogueira o homem que disse que o sol não girava em torno à terra, quer agora impedir a pesquisa sobre a cura de doenças muitas vezes cruéis que assolam os seres humanos. A Igreja diz falar em nome da vida. Em nome da vida, está ameaçando de morte toda a humanidade.

Segundo o Estado de São Paulo, a decisão do STF poderá contrariar um dogma da Igreja Católica, de que a vida começa na concepção, ou colocar um fim numa importante linha de pesquisa científica que procura a cura ou novos tratamentos para doenças degenerativas. A questão colocada é a mesma do aborto, determinar o momento do início da vida. Ora, o redator demonstra desconhecer a história da Igreja. Jamais foi proclamado dogma sobre o início da vida. As atuais considerações sobre o início da vida pertencem ao magistério da Igreja, não ao campo dos dogmas. Está faltando, no Estadão, redator que saiba o que é dogma.

Escrevi ainda há pouco que nossos purpurados parecem esquecer que a Igreja, durante séculos, admitiu o aborto. Que dois de seus campeões, são Tomás e santo Agostinho, eram favoráveis ao aborto. Segundo o aquinata, só haveria aborto pecaminoso quando o feto tivesse alma humana o que só aconteceria depois de o feto ter uma forma humana reconhecível. Para o Doutor Angélico, como o chamam os católicos, a chegada da alma ao corpo só ocorre no 40º dia de gravidez. A posição de Aquino sobre o assunto foi aceita pela igreja no Concílio de Viena, em 1312. Foi em pleno século XIX, em 1869 mais precisamente, que o Papa Pio IX declarou que o aborto constitui um pecado em qualquer situação e em qualquer momento que se realize. O que me espanta neste debate é que não vemos, na grande imprensa, um mísero jornalista que contraponha a este episcopado analfabeto a doutrina clara dos santos da Igreja. Se os católicos se pretendem contra o aborto, deveriam começar destituindo seus santos da condição de sapiência e santidade.

Hoje – provavelmente – se decidirá se o Brasil opta pelo obscurantismo e pela condenação a Galileu, ou pela postura independente de um país liberto do jugo medieval do Vaticano. Escrevi provavelmente, porque sempre pode existir um ministro pusilânime que peça vistas do processo e atrase indefinidamente a decisão.

Consta que nove dos onze ministros do STF são católicos. O risco de o Brasil alinhar-se à escória da humanidade é grande. Já aventei a hipótese de os católicos – e apenas eles – serem submetidos a sanções quando praticarem atos que as nações civilizadas não consideram crimes, e eles católicos consideram. Por uma questão de coerência, todo católico gravemente enfermo deveria recusar-se a receber qualquer benefício decorrente das pesquisas em torno às células-tronco.