¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, abril 09, 2008
 
ECOCHATOS VERSUS CORTIÇA



Beber vinho não é apenas beber um álcool. Há uma série de envolvimentos organolépticos e estéticos na degustação de um bom vinho. Entre esses envolvimentos eu coloco desde o desenho da garrafa até a taça com que se bebe e mesmo a toalha de mesa. Houve época em que esteve em moda no Brasil consumir-se um Liebfraumilch em garrafas azuis. Aquilo me horrorizava. Quando eu via alguém comprando as tais de garrafas azuis, eu já o bania para o rebotalho da humanidade. Da mesma forma, a taça há de ser clara e transparente, para que se veja a cor do vinho. E não consigo tomar vinho em restaurante com mesas sem toalhas. Me parece uma ofensa ao vinho. Posso até aceitar um chope ou mesmo uma caipirinha em uma mesa sem toalha. Mas não um vinho.

Influi também o ambiente em que se bebe. Vinhos, gosto de bebê-los em restaurantes com muito mármore, muitos espelhos, candelabros e muita madeira. Claro que se fosse insistir nisto, não teria muitas chances de degustar vinhos em São Paulo. Mas quando viajo não abro mão desses templos. Mês que vem, saio de novo a bater pernas pelo planetinha. Para variar, Paris e Madri, com Barcelona pelo meio. Acho que já faz uma década que não consigo escapar desse roteiro. Penso em outras cidades no mundo, mas Paris e Madri – ou Roma ou Barcelona – acabam me chamando imperiosamente. Bom, darei um pulo a Bruxelas. Com um único objetivo: passar uma noite em um café que adoro, o Metropole. Grand Place? Pode ser. Mas o objetivo é o Metropole. Ali, mesmo um vinho modesto adquire um sentido maior. Ou uma Leffe. Blonde, triple ou radieuses.

Algo que está me incomodando na atual produção de vinhos não são as tais de garrafas azuis, mas as tampas de borracha, silicone e outros materiais sintéticos. Antes de ir adiante, soube que já existem vinhos embalados em caixinhas tetrapaks com torneirinha. Quem os consome merece ser queimado em fogo lento por séculos no purgatório. Volto às tampas. Leio artigo de Guilherme Rodrigues na revista Gula de janeiro passado:

"Nada mais elementar que empunhar o saca-rolhas e abrir um vinho. Mas nem sempre foi assim. A garrafa de vidro, fechada com rolha de cortiça, surgiu por volta do século XVII. Foi uma das maiores revoluções tecnológicas, senão a maior, da saga dos brancos e tintos. Sem ela não haveria o champagne, por exemplo. Antes disso, armazenava-se a bebida em ânforas de barro, barris de madeira, vasilhames de couro e outros utensílios. Daí, vertida para jarras, era levada às mesas para o serviço. A rolha virou uma tampa tão comum que um extraterrestre, chegado de repente, poderia pensar que o vinho sai assim da videira... Exageros à parte, fico com a impressão de que a garrafa de vidro e a tampa de cortiça sempre fizeram parte dos vinhos, tão natural e espontânea a associação.

"Nos últimos tempos, porém, há quem pregue a extinção de ambas. As garrafas estão menos ameaçadas, apesar do avanço das embalagens bag in box no segmento dos vinhos correntes. Em compensação, a rolha de cortiça enfrenta a forte concorrência das tampas de borracha, silicone e outros materiais sintéticos, assim como do screw cap (as de rosca, que se abrem torcendo). Eu passo. Não vejo graça nenhuma em usar o saca-rolhas para extrair um tubo de plástico. Destrói a liturgia, a mística e a emoção da abertura da garrafa. E tanto faz se o episódio envolver o clássico Château Pétrus, um soberbo Montrachet ou um vinho mais simples".

Assino embaixo. Fui hoje a uma degustação de vinhos, onde me deliciei com quatro vinhos bastante exóticos, os chilenos Encierra e William Cole Alto Vuelo, além de um Barbera Doc, de Castell’Arquato, Itália, mais um Lorca Ópalo Syrah argentino. Este último tem uma característica curiosa: seu produtor corta todos os cachos da vinha, preservando apenas um. Recomendo vivamente. Mas volto à cortiça. Houve apresentação dos vinhos por um sommelier e lancei no debate a questão.

Claro que ele condenou o abandono da cortiça como uma decadência da enologia. Mas o que eu não sabia – e que ele me informou – é que por trás da guerra contra as rolhas de cortiça estão os ecochatos e sua defesa das florestas de sobreiros de Espanha e Portugal.

Ô raça infame! Esses estraga-prazeres, inimigos de tudo o que é bom na vida, deveriam torrar pela eternidade no inferno, sem direito sequer a um copo d’água. Comentei há pouco a localização geográfica do purgatório e do inferno. Sem sabermos onde ficam, sabemos que estão próximos um do outro. Está em Lucas, 16:19:

“Ora, havia um homem rico que se vestia de púrpura e de linho finíssimo, e todos os dias se regalava esplendidamente. 20 Ao seu portão fora deitado um mendigo, chamado Lázaro, todo coberto de úlceras; 21 o qual desejava alimentar-se com as migalhas que caíam da mesa do rico; e os próprios cães vinham lamber-lhe as úlceras. 22 Veio a morrer o mendigo, e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico, e foi sepultado. 23 No Hades, ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu ao longe a Abraão, e a Lázaro no seu seio. 24 E, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim, e envia-me Lázaro, para que molhe na água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama. 25 Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que em tua vida recebeste os teus bens, e Lázaro de igual modo os males; agora, porém, ele aqui é consolado, e tu atormentado. 26 E além disso, entre nós e vós está posto um grande abismo, de sorte que os que quisessem passar daqui para vós não poderiam, nem os de lá passar para nós”.

Nada tenho contra os ricos. Mas quanto aos defensores das rolhas sintéticas, concordo com Abraão. Não merecem sequer a ponta do dedo molhada de água para refrescar a língua.