¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, abril 25, 2008
 
ESSE EST PERCIPI:
OU DE COMO PERDI
UM TERREMOTO



Esse est percipi, pretendia o filósofo George Berkeley. Ser é ser percebido. O noticiário sobre a menina assassinada nesta semana só teve concorrente no terremoto que teria ocorrido na terça-feira passada, atingindo inclusive São Paulo. Digo teria ocorrido porque vivo aqui e não senti terremoto algum. Apesar de ter sido um terremoto de 5.2 na escala Richter, não percebi nada. Mas a televisão, ad nauseam, anunciava o sismo. Um certo orgulho cívico perpassou corações e mentes paulistanos: nós também terremotos. Tornados também já temos. Agora só faltam os tsunamis. A imprensa não se fez de rogada: chamou geólogos para examinar a hipótese de um tsunami.

Deve ter sido em função da estrutura de meu prédio, imaginei. É uma construção sólida, de 1949, que já mereceu um prêmio internacional de arquitetura. Vai ver que resistiu, impertérrito, às vibrações. Perguntei então ao zelador se alguém mais havia percebido algo. Uns sentiram, disse o zelador. Outros não. O senhor sentiu? Não, eu não senti nada.

Estou voltando de minha médica, onde fui fazer uma revisão geral da carcaça, em função de uma viagem mês que vem. A secretária não sentiu nada. A médica, muito menos. Entraram mais duas clientes no consultório. Interroguei as moças. Não, não haviam sentido nada.

Falei com um chofer de táxi. Ele estava vendo televisão e não havia sentido nada. Mas sua mulher entrou na sala com as pernas bambas. Decididamente, foi um terremoto muito estranho.

Em Crônicas de Bustos Domecq, Jorge Luís Borges e Bioy Casares – que tive a honra de traduzir no Brasil - há um belo conto, intitulado justamente “Esse est percipi”. Segundo um dos personagens, no futebol já “não há score nem times nem partidas. Os estádios já são ruínas caindo aos pedaços. Hoje tudo se passa na televisão e no rádio. A falsa excitação dos locutores nunca o levou a suspeitar que tudo é patranha? A última partida de futebol nesta capital foi jogada dia 24 de junho de 37. Desde aquele exato momento, o futebol, do mesmo modo que a vasta gama de esportes, é um gênero dramático, a cargo de um só homem em uma cabine ou de atores com camisetas junto ao câmera”.

Borges e Casares antecipam, de certa forma, O Show de Truman, este genial filme de Peter Weir, no qual Truman, desde o berço, é personagem de uma novela, rodada em um estúdio colossal que determina toda sua vida e ele não sabe disso. Don Domecq quer saber quando tudo começou.

“- Ninguém sabe. Tanto valeria pesquisar a quem ocorreram primeiro as inaugurações de escolas e as visitas faustosas de testas coroadas. São coisas que não existem fora dos estúdios de gravação e das redações. Convença-se, Domecq, a publicidade maciça é a marca dos tempos modernos.
“- E a conquista do espaço? – gemi.
“- É um programa estrangeiro, uma co-produção ianque-soviética. Um louvável progresso, não o neguemos, do espetáculo cientificista.
“- Presidente, o senhor me mete medo – resmunguei, sem respeitar a via hierárquica. Então no mundo não acontece nada?
“- Muito pouco – respondeu com sua fleugma inglesa. O que não compreendo é seu medo. O gênero humano está em casa, atento ao vídeo ou ao locutor, quando não à imprensa marrom. Que mais quer, Domecq? É a marcha gigante dos séculos, o ritmo do progresso que se impõe”.

Sei não. Do jeito em que marcha a humanidade, não me surpreenderia que a rede Globo tenha decretado terremoto e os telespectadores tenham se imposto a obrigação de tê-lo sentido. Verdade que prédios racharam e o abastecimento de água foi afetado em alguns lugares. Mas estes efeitos, Christof, o diretor de TV no filme de Weir, produzia com facilidade em seu monumental estúdio. Chuva ou sol, raio ou tempestade, tudo era produzido com o simples toque de um botão.

Ou talvez eu – e boa parte dos paulistanos – sejamos insensíveis a movimentos sísmicos. Sei lá! Me reservo o direito à dúvida.