¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, abril 12, 2008
 
EXORCIZANDO TEMORES


Ontem foi um dia agitado em meu bairro. Durante boa parte da tarde, dois helicópteros torraram a paciência de quem mora aqui. Ocorre que, numa delegacia das proximidades, foi libertado por habeas corpus Alexandre Narboni, um dos suspeitos do assassinato de sua filha, a menina Isabella. Sua mulher, a madrasta, também foi libertada, mas no Morumbi. Suponho que por lá o escândalo tenha sido igual. Mero exibicionismo da polícia. Para acompanhar a libertação de suspeitos de um crime comum, exibem um aparato que só teria sentido com um capo mafioso. O mesmo aconteceu há uns dez anos, com o juiz Lalau, acusado de corrupção na construção de um prédio da Justiça do Trabalho. Para prender um velhote debilitado pela idade, a polícia encheu a cidade de helicópteros.

Esta vaidade policialesca, até que entendo. Policiais adoram mostrar à imprensa que estão trabalhando. O que é difícil entender são as centenas de pessoas que se aglomeram nas portas de delegacia para gritar por justiça e chamar o casal de assassinos. Assassinos? Certamente. Pelo jeito, um matou e outro tentou acobertar o crime. Pelo que se sabe a partir das reportagens, houve mais envolvidos nesta história sórdida. Ao que tudo indica, a irmã de Narboni teve conhecimento do crime e também seus pais. Se não denunciaram o crime, são cúmplices.

O que não entendo é esta gente que vai às portas de delegacias pedir justiça. Certo, o crime é revoltante. Mas jamais me ocorreria abandonar o conforto de minha casa para ir até uma delegacia com o intuito de xingar dois criminosos. Crimes ocorrem aos montes, todos os dias, em São Paulo. Ninguém sai de suas casas para insultar criminosos. Que está acontecendo nesta affaire Isabella?

Em primeiro lugar, o fator criancinha. Criancinha sempre comove. Ainda mais quando é branca, linda e fotogênica. Se a vítima fosse uma negrinha desdentada de favela, certamente não provocaria comoção nacional. Em segundo lugar, os pais são de classe média paulistana. Fossem uns pobres diabos interioranos, tampouco provocariam comoção nacional. Esta reação da opinião pública parece evocar um certo medo interior: seria eu capaz de matar um filho?

Reportagem da Folha de São Paulo de amanhã mancheteia:

CRIANÇA DEVE SER POUPADA DO NOTICIÁRIO DE VIOLÊNCIA

Diz a linha fina:

Psicólogos e educadores aconselham pais a não exporem filhos a casos como o de Isabella

O que querem dizer estes senhores? Que o noticiário é prejudicial a infantes. Que estes devem ser poupados do que acontece em torno a eles. “Tenho pedido aos pais – diz a diretora de uma escola – que não deixem as crianças verem as notícias do caso. Quando os alunos falam sobre isso, tento desconversar e falar de outro assunto”.

Política de avestruz. Educadores não querem que seus educandos saibam que pais podem matar filhos. Ocorre que pais matando filho é algo bastante normal. Principalmente entre índios, onde até mesmo a Funai considera que se trata de uma condição cultural e é portanto perfeitamente admissível. Os bugrinhos podem ser afogados, enforcados ou enterrados vivos. O que não se admite é que uma menina branca, bonitinha e sorridente, seja assassinada por dois pais de classe média. Isto mexe com medos interiores.

Daí este monte de gente se aglomerando em frente a delegacias para exorcizar seus próprios temores.