¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, abril 06, 2008
 
ÍNDIO PODE MATAR



Colunistas, jornalistas e opinião pública em geral estão chocados com a morte da menina de cinco anos, que teria sido jogada do 6º andar de um edifício, presumivelmente por seu pai ou sua madrasta. A revista Veja chega até a incursionar em reflexões teológico-filosóficas sobre o problema do mal.

Desde os primórdios da humanidade essas situações-limite, insuportáveis, lançaram a razão humana em tortuosos exercícios mentais. "É desígnio dos deuses, e a única coisa a fazer é resignar-se" – foi essa desde sempre a saída mais humana para evitar a loucura da dor insuperável provocada pelo mal do mundo. O filósofo grego Xenófanes de Cólofon (560-478 a.C.) foi talvez o primeiro a se insurgir contra os deuses e suas maquinações. Xenófanes concluiu simplesmente que o mal perpassa todo o universo e da sua força nem os deuses escapam. Pelos séculos afora teólogos e filósofos tentaram ajudar a humanidade a conviver com o mal. Mais recentemente as explicações desceram do plano metafísico para se tornar objeto de estudo da sociologia, da psicologia e das ciências biológicas. Nenhuma teoria, porém, é capaz de abarcá-lo, de amainar o choque que ele provoca no corpo e na alma ou a destruição que causa no seio das famílias e no julgamento que fazemos de nós mesmos ao deparar com seres humanos agindo como bestas. Talvez a única certeza sobre o mal seja esta: ele é incontornável.

Ora, não se trata de problema filosófico ou teológico algum. Apenas a irresponsabilidade de dois criminosos, que certamente espancaram a menina até a morte e depois tentaram forjar uma explicação para o crime. Ocorre que improvisar um crime é algo complicado. Nos próximos dias, teremos certamente a confissão dos dois celerados.

No entanto... Se o crime choca a opinião pública, parece não causar comoção alguma o assassinato de crianças sistematicamente praticados por tribos indígenas no país. Em crônica passada, comentei a atitude da Igreja Católica, que luta contra o aborto por considerá-lo um assassinato, enquanto os indígenas brasileiros se reservam o direito de matar filhos de mães solteiras, os recém-nascidos portadores de deficiências físicas ou mentais. Gêmeos também podem ser sacrificados. Algumas etnias acreditam que um representa o bem e o outro o mal e, assim, por não saber quem é quem, eliminam os dois. Outras crêem que só os bichos podem ter mais de um filho de uma só vez. Há motivos mais fúteis, como casos de índios que mataram os que nasceram com simples manchas na pele – essas crianças, segundo eles, podem trazer maldição à tribo. Os rituais de execução consistem em enterrar vivos, afogar ou enforcar os bebês. Geralmente é a própria mãe quem deve executar a criança, embora haja casos em que pode ser auxiliada pelo pajé. É o que nos contava recente reportagem da Istoé.

A Folha de São Paulo de hoje volta ao assunto. Nos fala de Mayutá, índio de quase dois anos de idade, que deveria estar morto por conta da tradição de sua etnia kamaiurá. Na lei de sua tribo, gêmeos devem ser mortos ao nascer porque são sinônimo de maldição. Paltu Kamaiurá, 37, enviou seu pai, pajé, às pressas para a casa da família de sua mulher, Yakuiap, ao saber que ela havia dado à luz a gêmeos. Mas um deles já tinha sido morto pela família da mãe.

Vou repetir o que já escrevi. Segundo a Istoé, a prática do infanticídio já foi detectada em pelo menos 13 etnias, como os ianomâmis, os tapirapés e os madihas. Só os ianomâmis, em 2004, mataram 98 crianças. Os kamaiurás matam entre 20 e 30 por ano. Mas entre os sacerdotes que vociferam contra o aborto, você não encontra um só que denuncie estes assassinatos. E tudo isto sob os olhares complacentes da Funai, que considera que os brancos não devem interferir nas culturas indígenas.

A menina morta por dois brancos produz revolta e comoção social. As centenas de criancinhas índias mortas por seus pais não produzem revolta nem comoção alguma.

Índio pode matar à vontade. Faz parte de suas tradições culturais.