¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, abril 28, 2008
 
SOBRE NEUROCIÊNCIA


De Paris, recebo:

Prezado Janer,

Há alguns meses, sou leitor assíduo do seu blog, visitando-o sempre com muito prazer e atenção. Sua cultura caudalosa, seus argumentos precisos, sua escrita elegante e bem humorada muito me cativaram. Sem dúvida, seu blog é o meu preferido. Leio-o diariamente. Aprecio, em especial, seus textos sobre religião, nos quais você mostra todo seu conhecimento sobre a Bíblia e a história da ICAR.

Como você, tive rígida educação cristã, embora nas hostes da igreja protestante. Essa formação me saturou e me encheu de deformidades existenciais. Hoje, aos 31 anos, vou tentando me libertar do peso dessa tradição, o que me é tremendamente difícil, dado a muitas amarras, principalmente familiares. Mas isso é assunto para outra conversa...

Escrevo-lhe para conversar sobre um dos seus textos recentes, em que você criticou as neurociências, qualificando-as de “charlatanismo” e associando-as a alguém como “o parlapatão Lair Ribeiro, guru do Collor”. Esse seu texto muito me surpreendeu; confesso que não esperava uma opinião tão obtusa vinda de você. Assim, permito-me lhe escrever para lhe expor porque não concordo com sua posição.

Chamo-me Leonardo, sou médico neurologista e, há dois anos e meio, moro em uma cidade na qual você mesmo habitou durante um período de sua vida: Paris. Cá estou justamente para me aprofundar nessa área do conhecimento.

Criticar as neurociências por causa de Lair Ribeiro é tão razoável quanto depreciar toda a literatura universal por causa do Paulo Coelho. As neurociências são dos mais palpitantes domínios científicos atualmente. Trata-se de uma vasta área do conhecimento, sendo um espaço de convergência de diversos saberes: a neurofisiologia, a neurofarmacologia, a neuroradiologia, a psicologia cognitiva, a psicologia experimental, a neuropsicologia, a psiquiatria, entre outros. Os objetos de estudo e as aplicações práticas das neurociências, são, evidentemente, tão amplas quanto as ciências que as compõem. Há muitas frentes de trabalho; em uma vertente mais clínica, há os neurocientistas que se dedicam ao diagnóstico e tratamento de doenças neurológicas (como a doença de Alzheimer). Em uma outra linha, estão os que investigam os mecanismos neurobiológicos de diferentes processos cognitivos, envolvidos, por exemplo: na apreensão do meio que nos rodeia (processamento de estímulos visuais, por exemplo); na nossa vida relacional (o julgamento moral, o comportamento social); no fundamento da consciência (redes neurais de memória, em seus diversos tipos).

Por causa dessa última via de trabalho, as neurociências tangenciam questões filosóficas, o que foi abordado por neurocientistas de renome, como António Damásio, John Ledoux, Jean Pierre Changeux. No Brasil, o jornalista (bacharel em filosofia) Hélio Schwartsman, da Folha de São Paulo, freqüentemente usa descobertas neurocientíficas para debater questões filosóficas.

Na verdade, aproximei-me das neurociências justamente por me interessar por essa interface com as ciências humanas. A propósito, escrevi um artigo que foi publicado na revista “Arquivos de Neuropsiquiatria” (órgão da Academia Brasileira de Neurologia), em que discuto, à luz de alguns conceitos da neuropsiquiatria, alguns aspectos comportamentais do príncipe Míchkin, personagem de Dostoievski em “O Idiota”. Caso se interesse, envio-lhe o texto com o maior prazer.

Descobertas das neurociências têm lançado luz sobre o entendimento de comportamentos humanos extremamente complexos, como a religiosidade, a agressividade, as compulsões.

Não há nada de charlatanismo nisso. Há, sim, cientistas dedicados que trabalham honesta e duramente – como o brilhante brasileiro Miguel Nicolelis –, batendo-se por compreender determinadas questões, cujas respostas podem beneficiar milhões de pessoas que sofrem de distúrbios neuropsiquiátricos em todo o mundo.

Espero que esses modestos argumentos lhe sejam um estímulo para perceber as neurociências como um importante e precioso canteiro de obras da ciência moderna, e não como pretexto para gananciosos se locupletarem com um blá-blá-blá pseudo-científico.

Como vi no seu blog que, em breve, você viajará à Europa, teria o imenso prazer em convidá-lo a tomar um café em Paris, caso passe por aqui. Meu studio está bagunçado (acabei de me casar), mas, se precisar de um lugar para “pousar” (incluindo, é claro, sua pequena malinha de 20 quilos), estamos à disposição, é só avisar...

Um grande abraço, com apreço,

Leonardo de Souza


Meu caro Leonardo:

a história de uma bióloga especializada em neurociência citando Fernando Pessoa, em uma pretensa crítica a ateus, deixou-me irritado e me deixei levar pela hybris. Nada contra Pessoa. É meu poeta de cabeceira. Mas penso que não se pode misturar ciência com poesia. Ocorre que charlatães estão empunhando a neurociência com a mesma aisance com que outros empunham a física quântica, que hoje está virando uma espécie de auto-ajuda. Envie-me seu ensaio sobre o príncipe Michkin. Mais duas semanas, espero estarmos discutindo estas questões em torno a um bom Cahors em algum bistrô de Paris.

À propos: minha malinha não é de vinte quilos. Mas de oito. Estarei no Sully-Saint Germain, rue des Écoles. Celebraremos a bonne chère aux environs.