¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, junho 29, 2008
 
SEÑOR MOREIRA, FAVOR PRESENTARSE...



Uma leitora quer saber de onde saiu meu nome. Refere-se a Janer Cristaldo. Bueno, Cristaldo era sobrenome de meu avô paterno. Já o Janer, minha mãe encontrou naqueles almanaques distribuídos por farmácias, não sei se ainda alguém lembra deles. Traziam desde aforismos a fases da Lua, calendários e recomendações para a boa época de plantar este ou aquele cereal. Em meio a esses aforismos, havia um pensador, creio que francês, chamado Janer. Daí meu nome. Mais tarde, pesquisando, descobri que a coisa vem lá da Escandinávia, passou pela Alemanha, desceu pela França e chegou à Catalunha. Onde há uma escritora muito conhecida chamada Janer Pau. Também encontrei a palavrinha, várias vezes repetida, numa lista da Previdência dos Estados Unidos. Mas como sobrenome. Houve época em que meu nome esteve grafado em quase todos os banheiros do Brasil. É que o papel higiênico era produzido pela empresa sueca T. Janer.

Janer Cristaldo é apenas nome. Os sobrenomes são Ferreira Moreira. De repente, vai ver que sou judeu e nem estou sabendo disso. Em suma, me acostumei a ser tratado apenas pelo nome, o que me gera alguns problemas. Se estou em algum hotel no exterior e procuram pelo Cristaldo, não vão achar. Só existe o Moreira. Se não advirto antes meu interlocutor, não serei encontrado.

Aconteceu em Madri. Eu saía com minha Baixinha do Gijón, aquele café na Recoletos que sempre me impediu de chegar até a Biblioteca Nacional. Ao pôr o pé na faixa zebrada, encosta em mim um bom amigo, o Anibal Aicardi Abadie, cidadão da Banda Oriental del Uruguay e professor de História - na época - na Universidade Federal de Santa Catarina. Perfil cervantino, com uma eterna saharienne, ali estava a meu lado aquele distante amigo, com sua também eterna boina basca. Ora, havíamos interrompido um papo em Floripa. Empunhei Fray Luís de Leon:

- Como decíamos ayer...

Explico. Fray Luís (1527-1591) nasceu em Granada e se consagrou à Igreja, tendo ingressado no convento de Salamanca. Graduou-se em teologia em 1561, tendo se dedicado à cátedra das Sagradas Escrituras. Graças a seus conhecimentos das línguas orientais, traduziu ao espanhol o Cântico dos Cânticos. Melhor não traduzisse. A Inquisição proibia as traduções dos livros sagrados à língua vulgar. Foi condenado a cinco anos de prisão.

Teve sorte, escapou da fogueira. Fray Luís de Leon, em seu magistério, tinha o hábito de recapitular a cada aula o que fora explicado na anterior: "como decíamos ayer". Após cinco anos de cárcere, retomou sua cátedra. E seu bordão: "como decíamos ayer..." Na universidade de Salamanca, me sentei nos bancos toscos da sala de aula de Fray Luís, que são os mesmos há quinhentos anos. E assisti inclusive uma defesa de tese, em que o doutorando estava tão enfeitado quanto um toureiro com seu "traje de luces". Mas isto já é outro assunto. Em minha mente, eu só evocava o frade: "como decíamos ayer..."

Volto ao Gijón, na Recoletos, em Madri. Com o Abadie, continuei aquela conversa interrompida há vários anos na ilha. A Baixinha, que tinha olhado para a esquerda quando Abadie me abordou, perplexa. Não estava entendendo bem o que acontecia. Tive vários outros encontros desse tipo em minha vida, nas mais diferentes geografias, sem tê-los combinado. Elaborei inclusive o que chamo de Lei de Cristaldo: todos os encontros são possíveis, desde que as pessoas se desloquem. Parado, você não encontra ninguém.

Foi quando cometi um erro fatal. Como continuaria viajando pela Espanha, marquei encontro mais adiante com aquele personagem cervantino em meu hotel. Nada feito. Encontros marcados nem sempre dão certo. Ele procurou por Cristaldo. Ora, para o hotel eu era o Señor Moreira.

O pior viria depois. Eu esperava o embarque no aeroporto de Barajas, quando alguém no alto-falante chamou:
- Señor Moreira, favor presentarse a las oficinas de Iberia.
Comentei com a Baixinha:
- Estão chamando um português.
Alguns minutos depois, o aviso se repetiu:
- Señor Moreira, favor presentarse a las oficinas de Iberia.
- Esse luso vai perder o vôo - comentei.

Só na terceira vez, dei-me conta. Era eu.