¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, agosto 25, 2008
 
QUAGLIO ME CORRIGE



Prezado Janer,

Saudações,

Escrevi “Santos=Dumont e cachorros” no título do e-mail, mas não pretendo falar da cadelinha Fly, que o grande aeronauta criava em Cabangu.

Li seu artigo “Sobre Traduções”, e muito me interessou a obra mencionada, de Jean Soler, que quero ler, tão logo seja traduzida para uma língua que eu conheça, ou tão logo eu aprenda francês. O que vier primeiro. Mas vamos aos cachorros. Você escreveu em seu artigo: “Ora, que história é essa de cachorros de leões, de leoas criando cachorros, de ursa roubada de seus cachorros? É simples. A reputada tradução de João Ferreira de Almeida foi feita a partir do espanhol. Em espanhol, filhote é cachorro. Já o nosso cachorro é perro. Pior ainda, o insigne tradutor da Bíblia ao português desconhece palavrinhas básicas do espanhol.”

Eu posso estar errado, mas acho que não foi um caso de desconhecimento do espanhol. Se eu não estiver enganado, a palavra “cachorro”, em português, significa filhote de qualquer mamífero, assim como no espanhol, e o uso da dita palavra para designar o cão é um brasileirismo. Com o tempo, o uso da palavra “cachorro” com o significado de filhote caiu em desuso na língua portuguesa, mas alguns dicionários ainda informam, no verbete “cachorro”, o significado “cria de leão, tigre, urso etc.”, como em
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=cachorro.

Fiz apenas uma pesquisa rápida na internet, estou no trabalho e não tenho um bom dicionário por perto. Quando chegar em casa, vou tirar a dúvida.

Eu me lembro ainda, vagamente, que em um romance do Érico Veríssimo, (ou outro autor brasileiro, se não me falha a memória, mas tenho quase certeza que foi em “O Retrato”), eu li um diálogo entre dois personagens, em que um deles se refere a um cão como cachorro, e o outro, pernóstico, corrige o primeiro dizendo que o termo correto para o animal adulto é “cão”, e não “cachorro”.

Então, escrever “cachorro de urso” ou de leão, ou de lobo, não seria um caso de barbarismo, mas sim de arcaísmo, ou pedantismo mesmo. Só que, no caso da tradução do Almeida, feita no século XVII, nem arcaísmo seria. Provavelmente era linguagem corrente mesmo, em bom português, e não um espanholismo. De fato, a tradução de Almeida não é fiel, mas não é reputada sem motivo. Ela é para nossa língua o que a King James Version é para a língua inglesa.

Quanto a Santos=Dumont, em seu artigo “Porque choram nossos bravos” você escreveu que ele é produto da França, e que seria tido como maluco no Brasil da época. Não vou negar que a cultura francesa da época foi forte influência na vida dele. Isto seria absurdo. Nem vou defender a idéia de que a cultura brasileira tenha muitos méritos em relação aos feitos dele. Afinal, por ser Santos=Dumont meu conterrâneo, mineiro da Zona da Mata, ouço esse discurso laudatório que enfatiza seu local de nascimento com muita freqüência. “Grande brasileiro”, “grande mineiro”, “grande sandumonense”, até “grande barbacenense”, vivem dizendo por aqui.

Mas também não penso que ele tenha sido mero produto da França de seu tempo. Se assim fosse, a França teria gerado outros “produtos” tão expressivos quanto ele. É óbvio que ele não teria realizado o que realizou sem ter acesso aos clubes de aeronáutica que por aqui não existiam. Mas a França não teria visto os mesmos feitos em 1906, por uma só pessoa, se aquele indivíduo não estivesse lá. O que quero dizer é que seus contemporâneos franceses não fizeram nada que se comparasse ao que ele fez sozinho, e se o meio fosse o fator mais importante, teríamos, na mesma época e local, diversos engenheiros e aeronautas tão célebres pelo pioneirismo quanto ele. Vale lembrar também que Santos=Dumont só foi viver e estudar na França depois dos vinte e quatro anos, que desde sua juventude ele mostrava aptidão natural para lidar com máquinas e mecânica, e que nunca se graduou em engenharia. O mérito pelos seus feitos não é do Brasil nem da França, nem de Cabangu nem de Paris. É dele.

Um grande abraço de seu leitor,

Humberto Quaglio


Touché, Humberto.

Fui conferir no Houaiss e, de fato, essa acepção existe. Só me resta pedir desculpas ao Almeida. Mais ainda: vou suprimir este trecho da crônica, para evitar que eventualmente seja reproduzido.