¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

terça-feira, agosto 19, 2008
 
A REPULSA AO BELO


O que pensávamos ser estupidez de muçulmanos está se difundindo mesmo entre judeus e católicos. Leio em El País que a arquidiocese do México publicou uma “lista de valores” sobre o pudor, na qual recomenda às mulheres católicas que não usem roupas provocativas nem entrem em conversações ou piadas picantes com pessoas de outro sexo. Tudo isto para evitar agressões sexuais, este é o pretexto. Considera-se ainda que a pornografia é uma prostituição mental. Mais um pouco e proíbem o Cântico dos Cânticos, certamente o mais belo livro da Bíblia.

"Não usa roupa provocativa. Cuidado com teus olhares e gestos. Não fica só com um homem, mesmo que seja conhecido. Não permite familiaridades de teus amigos ou parentes. Não admite conversas ou piadas picantes”. Estas edificantes recomendações foram escritas pelo padre Sergio Roman Del Real, como material preparatório para o VI Encontro Mundial das Famílias, a celebrar-se no México em janeiro próximo.

Uma das coisas boas do mundo contemporâneo, a meu ver, é esta nonchalance com que as mulheres se despem, mesmo estando vestidas. Nenhuma mulher anda nua nas ruas, mas tem tantas nesgas de nudez que é quase como se nua estivesse. Ao pudico sacerdote não agrada nem um pouquinho a generosidade com que as mulheres nos brindam com seus encantos. Padre Sérgio considera a exibição do corpo como prostituição: “Quando exibimos nosso corpo sem recato, sem pudor, o prostituímos porque provocamos nos demais sentimentos em relação a nós aos quais não têm direito, a não ser que desejemos ser propriedade pública, isto é, que nos prostituamos mentalmente. Isso é a pornografia: uma prostituição mental”.

Se alguém imagina que isto seja pudor de católico, traduzo outra notícia, do mesmo El País. No assentamento judeu de Betar Illit, na Cisjordânia, onde vivem 40 mil colonos ortodoxos, um jovem de 19 anos, David Biton, teve a cara quebrada pelos “guardiães do recato”, por ter saído na noite de sexta-feira passada com jovens de sua idade. Qualquer semelhança com a polícia dos costumes da Arábia Saudita não é mera coincidência. Um menina de 14 anos teve o rosto queimado por ácido por vestir calças. Qualquer semelhança com os radicais argelinos que jogavam ácido no rosto de universitárias que não portavam véu, tampouco é coincidência. “Não lhes agrada quando vêem um rapaz e uma moça juntos, embora sejam irmãos, ficam muito nervosos”, diz Biton.

No Cântico dos Cânticos, livro transgressor, encontramos situação semelhante. Sulamita - finalmente uma voz feminina na Bíblia - sai pelas ruas da cidade em busca de seu amado. "Beije-me ele com os beijos da sua boca; porque melhor é o seu amor do que o vinho". De onde deduzimos que gostava tanto dos beijos como do vinho. É bom lembrar que Sulamita, além de ser mulher, não é casada.

“De noite, em meu leito, busquei aquele a quem ama a minha alma; busquei-o, porém não o achei. Levantar-me-ei, pois, e rodearei a cidade; pelas ruas e pelas praças buscarei aquele a quem ama a minha alma. Busquei-o, porém não o achei. Encontraram-me os guardas que rondavam pela cidade; eu lhes perguntei: Vistes, porventura, aquele a quem ama a minha alma?”

Mais adiante, se revela a verdadeira face de Jerusalém. Sulamita é espancada:

“Encontraram-me os guardas que rondavam pela cidade; espancaram-me, feriram-me; tiraram-me o manto os guardas dos muros. Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, se encontrardes o meu amado, que lhe digais que estou enferma de amor”.

Enferma de amor. A expressão é belíssima. Mas o universo predominantemente masculino de Israel não pode aceitar uma mulher enferma de amor. Os bravos filhos de Davi – aquele outro – conseguiram superar até mesmo seus primos sauditas. Se na Arábia da família Saud uma mulher não pode sair nas ruas sem a companhia de um macho da família, pelo menos pode sair com o irmão.

Em Betar Illit vivem os haredis, judeus ortodoxos que cumprem estritamente com as normas do “recato”, sempre lembradas em imensos cartazes distribuídos pela cidade: saia longa e camisa de manga longa para as mulheres. Para os homens, calças pretas, camisa branca e chapéu preto ou quipá, em função da seita à qual pertençam. Quem se desviar destas normas terá a ver-se com a polícia – clandestina – do recato.

Muitos rabinos endossam estas normas. Um outro haredi de Betar Illit, que teme revelar sua identidade, tenta explicar: “O mundo haredi não sabe muito bem como reagir. A Internet e os celulares derrubaram muros que nunca antes haviam sido ultrapassados em nossa comunidade, por isso agora os extremistas tentam levantá-los de novo. E por isso alguns rabinos legitimam a violência”.

A menina que teve o rosto queimado, de medo já nem sai de casa. Em junho passado, um desconhecido a abordou em um parque jogou-lhe o conteúdo de uma garrafa que só mais tarde ela descobriu ser ácido. “Teu rosto é lindo demais para esta cidade”, disse antes de atacá-la. Teve o rosto deformado e por sorte o ácido não lhe atingiu os olhos. O pecado da menina foi passear pela cidade de calças.

Segundo Moshe, um judeu ortodoxo de Beit Shemesh – cidade de 90 mil habitantes - que também não se atreve a dar seu sobrenome, em quase todas as cidades israelitas existe esta polícia do recato, o que varia é a intensidade da violência. “Em alguns lugares atacam e em outros intimidam. Não é um corpo oficial, atuam clandestinamente, mas todos sabemos quem são”.

Segundo Moshe, em Jerusalém há um grupo que joga ácido na roupa das mulheres quando a saia ou a manga das camisas são demasiado curtas. Outros sobem nos ônibus para assegurar-se de que as mulheres estão bem vestidas e não se misturam nos assentos com os homens. Tampouco hesitam em intimidar quem ouse organizar um concerto ou outras atividades de ócio.

Os judeus são hostis à beleza. Como também os cristãos, que surripiaram para si o Livro. Me reporto ao primeiro livro da Bíblia. Lá está, em Gênesis 6, 1:

"Sucedeu que, quando os homens começaram a multiplicar-se sobre a terra, e lhes nasceram filhas, viram os filhos dos deuses que as filhas dos homens eram formosas; e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram. (...) Viu o Senhor que era grande a maldade do homem na terra, e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era má continuamente. Então arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem na terra, e isso lhe pesou no coração. E disse o Senhor: Destruirei da face da terra o homem que criei, tanto o homem como o animal, os répteis e as aves do céu; porque me arrependo de os haver feito".

Daí o dilúvio. Porque as filhas dos homens eram belas, Jeová extermina homens, animais, répteis e aves do céu. É de supor-se que os peixes, que nadavam, tenham sobrevivido. O Livro nada nos diz sobre esta grave questão teológica. Assim como torna o trabalho uma obrigação maldita, o primeiro livro da Torá amaldiçoa também a beleza.

O padre mexicano, os haredis e demais israelitas estão sendo apenas coerentes.