¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, agosto 26, 2008
 
SATYAGRAHA (III)



6. A SEGUNDA DECISÃO

Nova ordem de soltura foi concedida em 11.07.2008, depois de decretada a prisão, desta vez preventiva, pela tentativa de suborno de delegado federal.
A decisão do Presidente do STF qualifica como “argumentos especulativos” os motivos adotados para o encarceramento. Entendendo que o magistrado de primeiro grau apenas supõe a possibilidade de interferência do banqueiro na coleta de novas provas, qualificou essa motivação como “rematado absurdo”.
Embora a cena da tentativa de corrupção haja sido filmada, um dos presos tenha indicado em depoimento a intermediação em favor do banqueiro, sobrevindo a apreensão de dinheiro em valor compatível com a propina prometida, o decisum diz que “a própria materialidade do delito se encontra calcada em fatos obscuros, até agora carentes de necessária elucidação”.
A apreensão de documento na casa do paciente (contendo um rol de pagamentos) foi considerada imprestável como prova de autoria, por ser ele apócrifo e conter “lançamentos vagos relativos ao ano de 2004”.
Adiante, a “duvidosa idoneidade e vago significado” da prova documental foi repisado.
A partir daí, a decisão atribui ao juiz de primeiro grau o uso de “nítida via oblíqua de desrespeitar a decisão deste Supremo Tribunal Federal”. Invoca o precedente do HC 94.016, relatado pelo ministro Celso de Mello, para apontar “reiterações de decisões constritivas” daquele magistrado. Afirma que “não é a primeira vez que o Juiz Federal Titular da 6ª Vara Criminal da Subseção Judiciária de São Paulo, Dr. Fausto Martin de Sanctis, insurge-se contra decisão emanada desta Corte”. Determina o envio de cópias para o TRF da 3º Região, a Corregedoria-Geral da Justiça Federal, o Conselho da Justiça Federal e para a Corregedoria Nacional de Justiça.
Diante do verdadeiro levante de juízes e de associações, relatado no início deste texto, o ministro Gilmar Mendes recuou. Encaminhando ofício ao Presidente da AJUFE, afirmou que: “o envio de peças a órgãos jurisdicionais administrativos (sic) objetivou unicamente complementar estudos destinados à regulamentação de medidas constritivas de liberdade, ora em andamento tanto no Conselho Nacional de Justiça quanto no Conselho da Justiça Federal”.

Intervenção autoritária na atividade jurisdicional - As críticas pessoais feitas pelo presidente do Supremo ao Juiz da 6º Vara Federal de São Paulo não se compadecem com a atividade jurisdicional.
Se tivesse havido descumprimento de decisão do STF, o procedimento previsto no Regimento Interno daquela Corte seria o dos artigos 46 e 47, por desobediência. Nem o ministro Celso de Mello, nem o próprio ministro Gilmar Mendes procederam como ali está previsto. O primeiro desses julgadores, ao invés de censurar o Juiz De Sanctis, apenas explicitou a extensão da ordem de HC que havia deferido (de suspensão cautelar de uma ação penal). Dessa forma, não há precedente algum. Não existe nenhuma desobediência documentada.
A desqualificação de um julgador, tentada em peça processual, é ela própria auto-desqualificante; atenta, ela sim, contra o exercício jurisdicional pleno estabelecido na divisão dos Poderes.
Apreciação sumária da prova dando-lhe inidoneidade definitiva - A apreensão de um documento apócrifo não retira a validade como indício. O lugar onde foi encontrado importa. O tempo da datação pode indicar uma linha de continuidade até o presente. A regularidade do auto de apreensão preenche o requisito formal. A prova pericial posterior poderá acrescer a autenticidade e a grafoscopia, a autoria.
O depoimento circunstanciado de preso, filmado na prática de ato ilícito, não pode ser descartado definitivamente em um exame liminar. Tanto mais se o teor não foi impugnado com base em algum vício de manifestação da vontade. Não pode ser descartado definitivamente como res derelicta em um processo.
A suspeita de que o investigado venha a tentar a corrupção ativa, para interferir nas investigações, quando já existe um episódio documentado mostrando isso, não é nenhum “rematado absurdo”. Esse abuso no uso da linguagem não convém à metodologia do processo penal; ele próprio é um deslize.

A retaliação pessoal – O encaminhamento de cópias da decisão do Presidente do STF para duas corregedorias está em desacordo mesmo com a explicação dada pelo ministro Gilmar Mendes ao Presidente da AJUFE. Se o propósito fosse o de colaborar com estudos no Conselho Nacional de Justiça, por que o envio não foi feito para esse órgão. Por que escolher duas Corregedorias como destinatárias ?
O intento de intimidar o juiz de primeiro grau está claro. Essa vontade determinada superou mesmo o princípio da legalidade.
A atividade correicional se destina unicamente a retificar vícios cometidos in procedendo, nunca in judicando. Caso contrário, invadiria a competência recursal dos tribunais. Também só estes detêm poder censório, que exige processo especial e se inicia por representação fundamentada.

Supressão de instância – O banqueiro preso não foi beneficiado com salvo-conduto. Portanto, poderia ser preso novamente, por outro motivo específico não coincidente com o da primeira prisão, ainda que revelado no mesmo procedimento investigatório já deflagrado.
Foi isso o que ocorreu.
Logo, a instância recursal era o TRF da 3ª R. Da decisão dessa Corte, caberia ser formulado pleito perante o STJ. Só então, contra o último órgão, a competência decisória passaria ao STF.
O mediano conhecedor de Direito Processual sabe disso; sabe também que houve supressão de instância na segunda decisão do Presidente do STF.
Como disse bem o procurador da República que atua na 6ª Vara Federal de São Paulo, Rodrigo de Grandi, ao suprimir-se o rito nas instâncias intermediárias, criou-se um foro especial para o banqueiro no STF.
O Brasil ficou mais desigual, pois a desigualdade da sociedade foi introjetada na estrutura do Judiciário. Com soberbo despudor, a igualdade perante a lei foi assassinada.

7. A CORRUPÇÃO SEMPRE OBCECA

É digno de uma nota final o fato de que nenhuma das decisões do ministro Gilmar Mendes tratou da “exposição pública” dos presos, do “caráter espetacular” pelo envolvimento da imprensa e do uso abusivo das algemas. Tudo isso foi embutido no exame do caso como um pano de fundo sem finalidade visível.
Portanto, fica a pergunta: por que fazer repetidas declarações a respeito, como que com um propósito de desestabilizar as carreiras do juiz da causa e do delegado chefe das investigações, se isso nunca fez parte da res in judicio deducta?
O esteio deste texto é marcar um episódio de larga repercussão, muitas implicações já sabidas, outras por saber ou não, conforme ele se desenvolva.
Esta marcação deveria ser feita por todos os que pudessem, em honra a muitos que devem ser repetidamente honrados. Para lembrar um só deles, basta invocar o nome do ministro Ribeiro da Costa, que presidiu o Supremo ao tempo da escalada do estado de exceção. Foi eleito pelos iguais, independente da medida do mandato, até que se esgotasse o tempo da sua jurisdição. Ele manteve a lúcida defesa do direito efetivo de que todos nós precisamos para viver, sem pompas, sem algaravias, mas irrecusável na sua legítima grandeza, que tanto obceca poderosos fugazes, cuja herança é só a das suas mazelas.
O mestre Paulo Rónai lembra-nos a Sátira de Juvenal: concedes licença aos corvos e envergonhas, com as tuas censuras, as pombas.
Do episódio aqui já longamente exposto, foi tudo o que ficou.