¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, setembro 27, 2008
 
BIBLIOANÁLISE, A NOVEL VIGARICE


Essa agora! Leio na Folha de São Paulo que a School of Life, de Londres, lançou um projeto de biblioterapia. Mediante certo pagamento, não exatamente módico, a terapia pelos livros. “A idéia é a seguinte: o cliente preenche uma ficha com informações sobre sua história, suas aspirações e seus hábitos e, a partir da consulta com um especialista, recebe indicações de leitura que o ajudem a enfrentar uma nova fase, encarar uma etapa importante ou simplesmente aproveitar um momento de sua vida”.

Uma sessão custa 35 libras (120 reais), mas pode-se escolher um contrato de cinco meses, em que o biblioanalista acompanha suas leituras e troca informações por e-mail, por 50 libras (170 reais).

Que livros fazem bem à saúde mental, não há dúvida alguma. Vou mais longe: fora da leitura não há salvação. Claro que você não vai morrer se não lê. Há milhões, senão bilhões de pessoas que não lêem e nem por isso vivem mal. Mas não entendem o mundo em que vivem e muito menos entendem a si mesmas. A leitura – a boa leitura, é claro – sempre teve um efeito terapêutico. Daí a pagar profissionais para orientá-lo sobre o que ler vai uma grande distância.

Os autores que me esclareceram sobre o mundo e sobre mim mesmo, eu os encontrei ao acaso, geralmente em bares. Explico: através de conversas com amigos em bares. As bibliografias de universidade foram mais ou menos inúteis. Nunca encontrei Nietzsche, Swift, Thackeray, Herman Hesse, Huxley, Orwell, Kazantzakis, Istrati, Ingenieros, Bertrand Russel, Reich, em currículos universitários. Aliás, pelo que intuo, a universidade sempre detestou estes autores. Em meu curso de filosofia, Nietzsche era visto como um vândalo irresponsável, não como um pensador. A academia sempre foi conservadora e não tem muito apreço por leituras que transformam.

Talvez não os tenha encontrado exatamente ao acaso, afinal não por acaso eu curtia pessoas que liam muito. Fora isto, sempre gostei de praticar a ronda das lombadas, como dizia Mário Quintana. Entrar numa livraria, ir bolinando os livros ao sabor dos títulos, trecheá-los. Através deste método, encontrei muita literatura vital. Hoje, quando já não leio mais ficções, vou direto às estantes de ensaios. Minha única queixa, nas grandes livrarias, é que as estantes são grandes demais. E misturam gêneros. Criou-se atualmente um título genérico para livros sobre religião – espiritualismo – e nessas estantes há um conúbio obsceno entre estudos sérios de religião e livros de auto-ajuda. Mas sempre dá para separar o joio do trigo.

Se você é leitor compulsivo, sempre saberá o que buscar e onde buscar. Um livro conduz a outros e o melhor biblioterapeuta é o autor que você está lendo. E sempre podemos nos aconselhar com amigos que lêem, que terão prazer em nos sugerir autores e jamais nos cobrarão um vintém. Eu, inclusive, sempre recebo consultas sobre leituras e sugiro títulos e autores com muito prazer. O único problema é que as leituras que me fascinaram talvez não fascinem outros. Gosto muito de recomendar Cervantes. Mas sei que não é uma leitura fácil. Além de exigir tempo, exige conhecimento de um vocabulário de quatro séculos atrás. Penso que Cervantes é mais indicado para pessoas que curtem a ironia, adoram a Espanha e querem viajar no tempo. Sem estes predicados, a leitura do Quixote pode ser uma tortura.

A School of Life abriu há três semanas e cerca de trinta pessoas já procuraram as sessões de biblioterapia. “Um casal planejava fazer uma viagem e procurava obras que ao mesmo tempo transmitissem o clima do lugar e dessem uma idéia não-ficcional do que iriam encontrar. Nosso consultor sugeriu alguns livros”. Ora bolas, precisa consultor? Não basta ir à estante de livros de viagem? O tal de biblioanalista, em verdade, é um substituto daquele antigo livreiro, que sabia do que tratavam os livros que vendia. Este profissional ainda existe, mas é cada vez mais raro. A verdade é que, com o gigantismo das livrarias e com a profusão de títulos editados, este conhecimento se torna mais ou menos inviável.

Certa vez, em uma livraria em Brasília, sei lá por que estranhas razões, andei procurando o romance Engenharia do Casamento, de Esdras do Nascimento. O balconista me encaminhou ao setor de livros técnicos. Outra vez, em Porto Alegre, pedi Sexus, do Henry Miller. O balconista atroz disse que estava em falta, mas ele tinha Nossa Vida Sexual, do Fritz Khan. Ou seja, desde há muito os funcionários de livrarias nada entendem da mercadoria que vendem.

A incultura dos balconistas parece estar gerando uma nova profissão, a dos tais de biblioanalistas. Ora, se psicanálise já é vigarice, biblioanálise é vigarice ao quadrado. A moda ainda vai chegar até nós. Se você tem amor a seu dinheiro, fuja destes picaretas.