¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, setembro 30, 2008
 
A QUEM APROVEITA O CRIME?


Há leitores que julgam ser uma ironia o fato de um semi-analfabeto assinar o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que entrará em vigor em 1º de janeiro do ano que vem. De minha parte, vejo a coisa de forma um pouco diferente. Vai ver que o Supremo Apedeuta quer alfabetizar-se e decidiu aplainar o caminho, eliminando esses escolhos como acentos diferenciais, hífens e trema.

Se o novo acordo pretende uniformizar a língua, que seus defensores tirem o cavalinho da chuva. Independentemente de hífens ou sinais diacríticos, o brasileiro é uma língua já bastante afastada do português. Quando se trata de traduzir literatura, tanto na Europa como nos Estados Unidos, há tradutores do brasileiro... e do português. Certa vez fui inclusive convidado por uma editora do Rio para adaptar uma tradução portuguesa ao idioma brasileiro. Não gostei da idéia e sugeri ao editor fazer logo uma tradução da língua original ao brasileiro. Ele não topou minha sugestão nem eu topei a proposta dele.

Português e brasileiro são línguas diferentes, e já nem falo do angolano ou moçambicano, que não conheço. Em Portugal, para um brasileiro, às vezes convém falar inglês para melhor entender-se com os lusos. Eles têm prosódia e vocabulário bastante distintos. A ênclise e a mesóclise são normais em Portugal. No Brasil, soam como afetação. Preferimos a próclise. Em Portugal, eu posso dizer “dá-mo” ou “trá-lo” ou "chupai-ma" sem passar por pernóstico. No Brasil, sequer seria entendido.

No que se refere a vocabulário, há horas em que o brasileiro pouco atilado se vê no mato sem cachorro. Algum leitor tem idéia do que seja uma bica? Uma sopa de grelos? Punhetas de bacalhau? Pregos? Bifanas? Safadinhas? Febras de porco? Se, no restaurante, o garçom lhe perguntar se quer a ementa, você talvez diga que prefere olhar o menu antes de pedir tal prato. Ocorre que ementa é o menu. Se estiver no metrô e ouvir um alerta aos utentes, saberá do que se trata? Se trafegar pelas estradas, vai encontrar constantes avisos de Bermas Baixas. Será uma cidade? Uma estação balneária? Um restaurante? Ora, não é nada disso. É acostamento.

A lista é longa e estas diferenças lingüísticas jamais serão aplainadas. Não serão acentos, hífens ou tremas que unificarão as diferentes expressões do português. Reforma ortográfica significa adaptar todo o acervo literário de um país às novas regras. Se é para ser feita, que seja radical e não apenas cosmética. Digamos que facilitasse a manipulação da língua aos analfabetos. Mas seria então necessariamente antietimológica. E aí perderiam as pessoas cultas que gostam de ver numa palavra sua origem.

A quem aproveita o crime? A resposta está nesta nota, na Folha de São Paulo de hoje:

Os livros didáticos adaptados à reforma ortográfica só começarão a chegar às escolas públicas em 2010, mas, até o fim do próximo ano, os alunos deverão ter acesso a dicionários com as novas regras.

O Ministério da Educação vai renovar em 2009 todo o acervo de dicionários para os estudantes do ensino fundamental e médio -cerca de 8 milhões a 10 milhões de novos exemplares, segundo o FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação). O acervo atenderá cerca de 37 milhões de alunos.

O FNDE estima gastar de R$ 70 milhões a R$ 90 milhões na compra dos dicionários. A alteração dos livros didáticos será feita de forma gradual até 2012. Em 2010, os estudantes da primeira a quinta série do ensino fundamental receberão os livros adaptados.


Junte a isto a transposição de todo o acervo literário nacional, desde o santo dos santos - o Machadinho - até pedintes públicos como Lygia Fagundes Telles ou Ignácio de Loyola Brandão. O mundo editorial deve estar esfregando as mãos de contente. Multiplique isto pelo número de países lusófonos e você terá uma idéia da festança. Quanto a mim, desculpem-me editores e gramáticos, não aceito tal reforma. Pretendo continuar escrevendo como sempre escrevi.

E tem mais: a malsinada reforma não passa de um wishful thinking da burritzia brasileira. Portugal não a assumirá. Quem viver, verá.