¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, outubro 20, 2008
 
“FILÓSOFO” CONFUNDE
SAGRADO COM EGOÍSMO



Em suas Páginas Amarelas, a última Veja entrevista o francês Luc Ferry, de 57 anos, apresentado como um caso raro de filósofo que transforma seus livros em best-sellers. É autor de Aprender a Viver, obra lançada em 2006, que vendeu 700 mil exemplares, 40 mil deles no Brasil. Pelo título, já se vê: trata-se de mais algum desses abacaxis de auto-ajuda. E se é best-seller, sério não deve ser. Não há livro inteligente no mundo que venda 700 mil exemplares em dois anos. Muito menos livro de filosofia. O sedizente filósofo, em verdade, está mais para os paulos coelhos da vida.

Que mais não seja, sua última obra, recém-lançada no Brasil, confirma minhas suspeitas: Famílias, amo vocês. Só o que faltava pretender que tal título possa pertencer ao âmbito da filosofia. Neste livro, o “filósofo” defende a idéia de que a família é a única coisa que resta de sagrado no mundo. A família teria substituído a religião como entidade sagrada no mundo moderno.

Ora, sagrado é o território das religiões. Que estão em franca expansão no mundo todo. Se o catolicismo está em retração, os crentes das ditas religiões neopentecostalistas brotam como cogumelos após a chuva. Na própria França, país do autor, o Estado teve de recorrer à justiça para impedir o avanço de uma religião ridícula, criada por um escritor de ficção científica, a cientologia. Nos Estados Unidos, até um filme bobo como Guerra nas Estrelas gerou uma nova crença. Isso sem falar no Islã, que se expande não só em sua geografia como também na Europa. A almejada morte de Deus, costumo afirmar, não passou de um wishful thinking de um pensador sensível do século XIX.

“Essa corrida para as igrejas não chega nem perto do que acontece quando o assunto é família – diz Ferry –. Pergunte aos milhões desses novos fiéis se eles morreriam pelo seu deus. A resposta será não. A família é a única entidade realmente sagrada na sociedade moderna, aquela pela qual todos nós, ocidentais, aceitaríamos morrer, se preciso. Os únicos seres pelos quais arriscaríamos a vida no mundo de hoje são aqueles próximos de nós: a família, os amigos e, em um número bem menor, pessoas mais distantes que nos causam grande comoção. No século XX, o ser humano virou sagrado.

De que planeta estará falando o “filósofo”? Deste não deve ser. Neste, as crianças abandonadas se contam por milhões, as famílias se desagregam aceleradamente e se há algo que nada tem de sagrado é o ser humano. Ser humano é uma coisa bem profana, que serve tanto para bucha de canhão como para mão-de-obra vil, tanto para tráfico sexual como para enriquecimento de vigaristas que empunham – estes sim – o sagrado, para enriquecer e passar bem.

Há milhões de seres humanos no planetinha sendo transportados entre continentes, tanto para exploração sexual como para exploração de mão-de-obra, e Monsieur Ferry pretende nos vender a idéia de que no século XX o ser humano virou sagrado. Justo no século em que Stalin, cultuado como um deus, matou 20 milhões. Mao, cultuado como herói, outros 65 milhões. Pol Pot, tido como um líder revolucionário, dois milhões. E por aí vai.

“Hoje, no Ocidente – prossegue o "filósofo" -, ninguém mais aceita morrer por um deus, um país ou um ideal. Há, sim, religiosos extremistas no Islã. Há gente na Chechênia ou na Ossétia disposta a morrer pela nação. Mas garanto que não há cidadãos com tais intenções na Alemanha, na França ou nos Estados Unidos. Em contrapartida, não conheço pai que não arriscaria a vida por seus filhos. Os filhos se tornaram o principal canal para o homem tentar transcender espiritualmente. As crianças substituíram as instituições despedaçadas que citei acima”.

Em termos. Digamos que um alemão, um francês ou um americano não aceitem morrer por um deus. Mas morrem pela pátria. Não que queiram morrer pela pátria, mas têm o dever de por ela morrer. Os soldados que estão morrendo nas guerras que ainda são travadas no mundo contemporâneo, estão morrendo por países e por ideais que estes países encarnam. Quanto a pais arriscarem suas vidas pelos filhos, isto nada tem de moderno. Nem mesmo de humano. É instintivo. Faz parte e desde sempre fez parte da preservação da espécie. Qualquer animal arrisca a vida pelos seus filhotes. Teriam por isso os animais um valor sagrado?

Ferry está confundindo o sagrado com proteção. Vivemos em um mundo hostil, competitivo – e o autor fala disso em sua entrevista. A família serve então de refúgio seguro às ameaças do mundo externo. Alberto Moravia, esquecido autor do século passado, gostava de comparar a família a uma fortaleza de egoísmo. Os pais são os generais, os filhos são os soldados. Conheço inúmeras famílias para as quais só existe um universo, sua ninhada. Que lá fora caiam raios e trovões, que soem trombetas e canhões, tanto faz. Desde que as crias estejam bem protegidas sob as asas paternas. Não vejo nada de nobre nisto. Muito menos de sagrado. Mas muito de egoísta.

Ainda ontem eu comentava notícia vinda da Espanha, onde muitos casais, separados de fato, optam pela moradia comum por razões de ordem econômica. Há inclusive filhos adultos voltando a viver com os pais. É a volta à fortaleza, para proteger-se da intempérie. Lá fora, chove e faz frio. Na família, sombra e água fresca.

Sombra e água fresca quando se vive em país rico, bem entendido. É o caso de Luc Ferry. Quando se vive em país miserável, até dentro de casa chove e faz frio. Isso quando se tem casa. As reflexões do “filósofo” retratam uma realidade de Primeiro Mundo e se tornam irônicas quando vistas do Terceiro.