¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

domingo, outubro 19, 2008
 
REFLEXÕES SOBRE O FIM DOS TEMPOS


Em julho passado, antes da crise que assola o planetinha, eu manifestava a amigos suecos meu espanto ante a prosperidade dos suecos. Não é bem assim, disse-me um interlocutor. O sueco mora em uma bela casa, tem um carro de luxo, tem iate ou barco à vela, mas nada está pago. Ele está endividado até o fim de seus dias. Assim não é muito difícil ser próspero. As pessoas possuem o que não podem possuir e aparentam uma vida que normalmente não poderiam ter.

Me ocorrem estas lembranças ao ler reportagem do El País sobre a bancarrota da Islândia. “Pessoas adultas que viram desaparecer as economias de uma vida toda; pais de família incapazes de pagar suas dívidas hipotecárias; jovens com estudos universitários obrigados a abandonar apartamentos recém-comprados, seus sonhos de prosperidade aniquilados: não é a exceção, é a nova norma na Islândia, país cuja população, a mais devastada pela atual crise financeira mundial, se encontra em estado de choque. Como os sobreviventes de um terremoto, se lamenta um. Nosso 11 de setembro, chora outro”. O país teme uma emigração em massa. Com trezentos mil habitantes, a ilha teve recentemente mil bancários desempregados.

Segundo informe das Nações Unidas, a Islândia era tida, no início deste ano, como o melhor lugar do mundo para se viver. Um estudo acadêmico publicado em 2006 afirmava que os islandeses eram as pessoas mais felizes do mundo. Jovens empresários pagavam mil euros por um champanhe e o tomavam como se fosse cerveja. Hoje, o governo de Reikjavik estuda a possibilidade de aceitar um empréstimo gigantesco da Rússia, cuja população, no estudo de 2006, era tida como a mais infeliz do mundo. A festa – disse um islandês – acabou.

Em proporções menores, o mesmo aconteceu na Espanha e está acontecendo em diversos países. Imigrantes que mal tinham um salário para sustentar-se, aproveitando as facilidades de crédito, compravam apartamentos de 400 ou 500 mil euros. Estão tendo de devolver as chaves, sem receber ressarcimento algum pelo que já foi pago.

Longe de mim pretender entender economia. Meu consolo é que os economistas também não entendem. Mas não é preciso muito bom senso para intuir que o mais prudente que se pode fazer na vida é garantir um lugar onde cair morto. Esta sempre foi a preocupação maior de minha Baixinha: viver sem pagar aluguéis nem intermináveis dívidas imobiliárias. Nunca houve hipotecas em nossas vidas. Quanto a carros, ela logo descobriu que se pode viver muito bem sem carro. Quanto a mim, até hoje não sei dirigir. Nascido no campo, conservo até hoje uma filosofia de camponês: tudo, menos dívidas. Sempre abominei crédito e cartões de créditos. Estes, só fui usá-los há uns quatro anos. Porque hoje, sem cartão, você não consegue nem mesmo fazer reserva em um hotel.

Já pensei em ter um apartamento em Madri ou Paris. O que me afastou deste projeto foi o preço do metro quadrado. Digamos que tivesse comprado um, com prestações a perder de vista. Hoje estaria chorando a devolução das chaves. Aqui em São Paulo, conheço pessoas que moram em condomínios de alto luxo sem terem condições para neles morar. As dívidas vão sendo empurradas com a barriga, renegociadas. Um dia, a casa cai. Restam três opções: suicidar-se, achacar os amigos ou renunciar ao padrão de vida. Esta última é a mais difícil. Como suicidar-se é um tanto doloroso, optam pela segunda. Mas esta logo se exaure.

A tal de crise, suspeito, em boa parte é decorrência desta mania de dar um passo maior que as pernas. É claro que quem tem um apartamento quitado, que não tem dívidas de carro ou decorrentes do padrão de vida, será bem menos afetado pela tal de crise. Quem vivia de crédito vai passar mal.

Sua Santidade, Bento XVI, dizia há pouco que é melhor investir na palavra divina. Ateu sendo, prefiro investir em bens imateriais: cultura, leitura, viagens. Em meus dias de Estocolmo – não estes de julho passado, mas os de 71, quando lá vivi – tive uma namorada que era guia de turismo. Chamava-se Lena e eu a chamava de Lena Lena. (Lena quer dizer doce, suave). Havia na época um medo difuso do urso soviético. A família dela não gostava de sua opção, achava que não dava dinheiro nem levava a nada. “Mas quando os russos invadirem a Suécia – dizia-me Lena Lena – eles perderão tudo. Eu não perderei nada. As minhas viagens, ninguém me tira”.

Apartamentos e carros não quitados podem derreter-se. Padrões de vida suntuosos também. Mas cultura adquirida ninguém perde. Livros lidos, muito menos. Viagens feitas, não há crise que as roube. Muito menos vinho bebido. Tampouco perdemos a lembrança das mulheres que um dia amamos.

Então leitores, se o fim dos tempos está próximo, como pretendem as Cassandras, o mais prudente é ler, namorar, beber e viajar. Viajar mesmo a crédito. Se você não puder pagar, viagem é coisa que não se devolve. O resto... é o resto.