¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, outubro 18, 2008
 
SÓ MATA QUEM AMA


O coronel Eduardo Félix, comandante do Batalhão de Choque da Polícia Militar de São Paulo, declarou que os policiais tiveram condições de atingir Lindemberg Fernandes Alves durante as cem horas que fez duas adolescentes reféns em Santo André. Segundo os jornais, por seis vezes o seqüestrador esteve na mira dos atiradores de elite. A iniciativa não foi tomada, no entanto, por se tratar de "um jovem em crise amorosa".

"Nós poderíamos ter dado o tiro de comprometimento. Mas era um garoto de 22 anos, sem antecedentes criminais e uma crise amorosa. Se nos tivéssemos atingido com um tiro de comprometimento, fatalmente estariam questionando por que o Gate não negociou mais, por que deram um tiro em jovem de 22 anos de idade em uma crise amorosa, fazendo algo em determinado momento em que se arrependeria para o resto da vida", afirmou o coronel.

Aparentemente, a PM tem sagrada reverência pelo sentimento amoroso. Já que se trata de amor, que seus soldados não atirem no homem que ama. Melhor esperar que o homem que ama atire, mate a amada e destroce a boca da outra refém.

O que a imprensa não comenta – nem vai comentar, porque a imprensa paulistana está de mãos atadas quando se trata de criticar José Serra – é que estamos a uma semana do segundo turno das eleições municipais. Não ficaria bem para o governo, como me aventa um leitor, a televisão mostrar ao eleitorado restos do cérebro do criminoso espalhados no piso. A vantagem de Kassab sobre Marta Suplicy poderia esvanecer-se no ar. Melhor deixar estar para ver como fica. Como ficou, todos sabemos. Uma menina moribunda, que se escapar da morte não escapará da paralisia. E uma outra com a boca deformada.

Nas entrelinhas da imprensa, nota-se uma certa simpatia pelo gesto do animal. Estava apaixonado. Sentia-se perdido com a recusa da namorada em retomar a relação. Sua vida não tinha mais sentido. Logo, só podia fazer o que fez. “Inconformado com o fim do relacionamento...”, repetem os jornais. Como se inconformar-se com o fim de um relacionamento justificasse a um celerado seqüestrar uma menina, mantê-la em cárcere privado e por fim tentar assassiná-la.

Sobre o fato de que o criminoso tinha 19 anos ao começar seu relacionamento com uma menina que tinha então 12 anos, comentário algum. Ora, o Código Penal tipifica tais relações como estupro. Jornalista algum fala em estupro. Nem mesmo em pedofilia, figura que não existe no Código Penal brasileiro, mas que os jornais sempre empunham quando se trata de condenar alguém oriundo da classe média que tenha relações com menores.

Nos anos 70, as feministas brasileiras lançaram o slogan: “Quem ama não mata”. Creio que até houve uma novela com este título. Ora, é exatamente o contrário. Só mata quem ama. Não amasse, não teria razão alguma para matar. Como afirma o leniente coronel do Gate, o seqüestrador vivia uma crise amorosa.

No fundo, essa concepção perversa de amor que o cristianismo introduziu no Ocidente. A amada só pode ser uma. Uma vez perdida, a vida perde o sentido. Então, se não é minha não será de mais ninguém. Como o segundo turno é na semana que vem e um cadáver pode mudar o favoritismo do candidato do governo nas pesquisas, preserve-se o assassino. Tudo, menos televisão mostrando cadáver. Dia seguinte, o PT estaria vociferando aos quatro ventos contra a “truculência da elite branca”. Isso poderia mexer nos confortáveis 16 por cento de vantagem de Kassab sobre Marta. Quanto às meninas mutiladas por balas, nada obsta. Teoricamente, não foi a polícia que as executou.

Por razões eleitorais, uma menina está em coma irreversível e a outra com a face deformada.