¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

segunda-feira, novembro 03, 2008
 
BENTO APOSTA NA GEOGRAFIA DO ALÉM
E CONDENA ÚNICO HORIZONTE TERRENO



Bento XVI perguntou ontem aos fiéis que assistiam à homilia do Dia de Finados, no Vaticano, se "os homens e as mulheres de nossa época desejam a vida eterna ou se a existência terrena se converteu em seu único horizonte". Em meus verdes anos, minha maior angústia ao deixar de crer em Deus foi a ausência de vida eterna. Quer dizer que tudo terminaria após a morte? Era angústia que me corroía por dentro. Mas não corroeu-me por muito tempo. Em primeiro lugar, era muito cedo para alimentar tais preocupações. Depois, com a passagem dos anos, comecei a perguntar-me se vida eterna era uma boa idéia. Concluí que não.

Talvez tenha contribuído para isso a leitura de Tous les hommes sont mortels, de Simone de Beauvoir. O livro narra a vida de Fosca, conde do século XIII, da cidade de Carmona, que em algum momento de sua vida bebeu um elixir da vida eterna. Longe de torná-lo feliz, a imortalidade o entedia. Fosca não suporta mais ver a história repetir-se, as revoluções se sucedendo às tiranias e depois voltando a instituir tiranias. “Todos os dias o sol levantou-se e deitou-se. Entrei no hospício, saí do hospício. Houve guerras: depois da guerra, a paz; depois da paz, outra guerra. Todos os dias homens nascem e homens morrem”. O conde busca a morte e não consegue morrer.

Isso que Fosca vivia na História, onde existem passado e presente, como também a perspectiva de um futuro. Para Bento XVI, a vida eterna é “uma imersão no oceano do amor infinito no qual o tempo, o passado e o futuro não existem". Nesta geografia sem graça do além desenhada por Sua Santidade, o conde certamente enlouqueceria. Viver sem passado é renunciar à memória. Sem futuro, é renunciar à esperança. Viver em eterno presente é não ter amigos nem amores nem lembranças. Nem mesmo conhecimento, pois conhecimento depende do passado. Sua Santidade parece não perceber as dimensões das bobagens que profere.

Como Fosca, eu também enlouqueceria. Além do mais, segundo o Cristo, lá não existe a matéria, a boa carne que tantos prazeres nos dá. Dores também, é verdade, mas diria que o saldo é positivo. Em Marcos, os saduceus tentam confundir Jesus, ao propor-lhe um enigma: uma mulher fora casada com sete diferentes maridos, tendo todos morrido antes dela. Na ressurreição, de qual deles ela será mulher, “quando todos ressuscitarem?” Cristo não se aperta. Não há casamento depois da ressurreição. Os ressuscitados seriam como anjos no céu. Isto é, imateriais.

Foi pergunta que me fiz, quando ainda não estava totalmente curado da angústia da ausência de vida eterna. E minhas amadas? Eu as reencontrarei nalguma curva do paraíso? Voltarão a mim ou terão compromissos outros com outros amados? Enfim, se ressuscitam sem a boa e antiga carne, tanto faz como tanto fez. Não tem graça. Não interessa.

Nestes dias, acabei de ler o segundo volume de Os Monoteístas, de F. E. Peters, um belo ensaio sobre as crenças fundamentais dos três grandes monoteísmos contemporâneos, judaísmo, cristianismo e islamismo, de onde extraí as informações supra. Para quem gosta do assunto, recomendo vivamente a leitura.

Segundo o autor, “desde o começo a Bíblia parece ter muito pouca idéia ou interesse a respeito daquilo que se segue à morte. A aniquilação total é uma noção difícil, de fato até sofisticada, e os israelitas antigos preferiam a ausência de vida, uma existência, mas exatamente sem vida, num lugar chamado Xeol. Embora as descrições e a localização sejam vagas, e sua conceitualização não tenha sido plenamente elaborada, o Xeol é em geral um lugar escuro, silencioso, subterrâneo – seus outros nomes são sepulcro ou abismo – e, onde são especificados, seus principais habitantes parecem ser que aqueles que morreram de modo violento ou não tiveram um enterro apropriado ou, segundo outro modo de ver, todos os mortos. ‘Lá os ímpios cessam de perturbar’, diz Jó do Xeol, ‘lá repousam os exaustos de forças. Lá os presos estão tranqüilos, sem ouvir a voz do capataz. Lá estão tanto o pequeno como o grande, e o escravo fica livre de seu senhor”.

Para Peters, somente após o Novo Testamento surge a idéia de uma ressurreição com carne. Era uma idéia necessária: como era possível punir a alma desincorporada com os castigos notoriamente físicos do inferno, onde, segundo Marcos, “o verme não morre e o fogo não se apaga?” Não era fácil.

A concepção de Agostinho é bem mais atraente. Agostinho foi aquele bispo de Hipona que aspirava a castidade, mas com ressalvas. “Dai-me a castidade, Senhor, mas não já!” Malandro, o santo homem. Para este pensador, o corpo ressuscitado deveria ser incorrupto, mas também deveria estar afastado de toda mudança. O corpo seria reagrupado, sem faltar nada, no seu estado mais belo, que Agostinho situa por volta dos trinta anos.

Já melhorou. Voltar aos trinta, sem as seqüelas da idade provecta, sem preocupações com glicemia, colesterol ou triglicérides, não deixa de ser tentador. Mais ainda, provavelmente com a experiência dos sessenta e com o pleno vigor da meia idade. Interessante. Pelo menos por algum tempo. Se for pela eternidade, creio que me entediaria mais que o conde Fosca.

Em sua homilia, Bento XVI condena explicitamente aqueles cuja “existência terrena se converteu em seu único horizonte”. É a mesma filosofia aquela, manifestada há poucas semanas, de considerar melhor apostar na palavra divina que nas ações da Bolsa. Que ele diga isto a seu rebanho, até que se entende. Quem não entende é o rebanho. Por mais que os católicos acreditem na vida eterna, sempre acabam privilegiando esta nossa vidinha terrena. Quando chega a hora de optar pelas belezas da vida eterna – como diz Bento – seu redil busca medicina de ponta.

Seguro morreu de velho. Melhor apostar no único horizonte.