¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, novembro 26, 2008
 
COMO QUERO SER QUEIMADO


O pensamento contemporâneo me confunde. Continuo intrigado com o tal de poliamor. Me sinto obrigado a repetir o que comentei há sete meses. Em maio deste ano, escrevi sobre entrevista com três psicoterapeutas que definiam pessoas com uma sexualidade mais exigente como tarados, pervertidos, ninfomaníacos ou depravados. Ser entusiasta do bom esporte passava a constituir algum tipo de patologia do sexo. “Mais conhecida como compulsão sexual, esse transtorno atinge homens e mulheres, sem distinção de idade”. Segundo a sexóloga Maria Cláudia Lordello, o desejo sexual hiperativo acaba resultando em uma inquietude da pessoa. "Isso a impede de fazer outras coisas importantes da vida. Tarefas cotidianas como trabalho, estudo e vida familiar acabam ficando comprometidas, pois ela deixa de realizá-las para fantasiar ou mesmo para vivenciar esses desejos".

Ora, já comentei sobre os dois homens tidos como gênios do amor. Um pertence à história, outro ao mundo da ficção. Para começar, Giacomo Casanova di Seingalt (1725 - 1798). Que, aliás, teve um encontro com Lorenzo da Ponte, o libretista da ópera Don Giovanni, de Mozart. Cidadão da Sereníssima República de Veneza, lista em suas Memórias algo em torno de duas mil mulheres, que perseguiu a cavalo e em diligência, de Madri e Londres a Moscou, na segunda metade do século XVIII. Quem for procurar o verbete na Internet, vai encontrar referência a 122 ou 123 mulheres. Isso é bobagem, cifra de qualquer moleque contemporâneo.

Aos sessenta anos, Giacomo Casanova aceita o convite do conde Emanuel de Waldstein para organizar a sua biblioteca e escrever as suas memórias. Os dias do veneziano acabam no palácio de Dux, na Boêmia, ao norte do território checo, onde encontrou teto, alimento e tempo para escrever. “Agora que não posso mais viver, sento e escrevo sobre o que vivi”. Sem jamais ter pretendido fazer literatura, Casanova entra na História da Literatura, em função de sua vida aventureira. Freqüentou cortes e bordéis, prisão e caserna, clérigos e políticos, conventos e salões literários. Quem quiser se debruçar sobre o século XVIII - seja historiador, seja sociólogo, seja mero curioso - terá em Casanova um excelente guia. Na edição brasileira (Rio, Livraria José Olympio Editora, 1957), suas Memórias abrangem dez volumes. “Sei que existi, porque senti; e, dando-me o sentimento este conhecimento, sei igualmente que deixarei de existir quando cessar de sentir. Se me acontecer sentir depois de morto, não duvidarei de mais nada; mas darei um desmentido a todos aqueles que me virão dizer que estou morto”.

Apesar de busca frenética de mulheres – que o caracterizaria como tarado, segundo as nossas sexólogas – teve vida intelectual intensa. Hoje, segundo o juiz Adolfo Naujorks , de Rondônia, seria um poliamante. Os tempos mudam. “Cultivar o prazer dos sentidos – escreveu Casanova - foi sempre minha principal preocupação; nunca encontrei outra coisa mais importante. Sentindo-me nascido para o belo sexo, sempre o amei e por ele me fiz amar quanto pude. Apreciei também os bons manjares com transporte, e sempre me apaixonaram todos os objetos capazes de me excitar a curiosidade”.

Se Don Giovanni pertence ao território do mito, Casanova faz parte da história. Lenda ou realidade, ambos passaram a ser considerados gênios do amor. Com uma diferença: enquanto Don Giovanni conquista e vence as mulheres, deixando atrás de si um rastro de ódio e despeito, Casanova não quer humilhar ninguém. É uma festa para suas parceiras, que não hesitam em convidar filhas e irmãs para o bom folguedo. Em seus dias em Dux, confessa:

“Não me quererão mal quando me virem esvaziar a bolsa de meus amigos para atender aos meus caprichos, pois esses amigos tinham projetos quiméricos, e, fazendo-os esperar o êxito, esperava eu mesmo curá-los desenganando-os. Enganava-os para torná-los prudentes, e não me considerava culpado, pois nunca agia movido por espírito de avareza. Para custear meus prazeres, empregava somas destinadas à obtenção de posses que a natureza não possibilita. Se hoje estivesse rico, sentir-me-ia culpado; mas nada possuo, tudo esbanjei, e isto me consola e me justifica. Era um dinheiro destinado a loucuras: pondo-o a serviço das minhas, não desviei absolutamente seu emprego”.

Como é que é? Pervertidos, ninfomaníacos, depravados? Ou poliamoristas? Os tais de psicólogos, ou mesmo os juristas, parecem não ter chegado a uma conclusão. É curioso observar como comportamentos que admiramos no mundo da ficção ou em pessoas famosas viram vício quando cultivados pelo comum dos mortais. Don Giovanni, por exemplo. Vejamos a famosa listina de Leporello, que até hoje fascina multidões em todos os salões de ópera do mundo. Eu e minha Baixinha éramos apaixonados por Don Giovanni. Na cerimônia de sua cremação, além de uma copla de Carmen, outra de nossas paixões, pedi esta:

Deh, vieni alla finestra, o mio tesoro,
deh, vieni a consolar il pianto mio.
Se neghi a me di dar qualche ristoro,
davanti agli occhi tuoi morir vogl'io.
Tu ch'hai la bocca dolce più che il miele,
tu che il zucchero porti in mezzo al core,
non esser, gioia mia, con me crudele,
lasciati almen veder, mio bell'amore!


Assim ela baixou às chamas. Quando passar e rumar ao fogo, já pedi à Primeira Namorada, este outro momento de Da Ponte:

Madamina!

Il catalogo e questo,
Delle belle, che ano il padron mio!
Un catalogo egli e ch'ho fatto io:
Osservate, leggete con me!

In Italia seicento e quaranta,
In Allemagna duecento trentuna;
Cento in Francia, in Turchia novantuna,
Ma, ma in Ispagna, son gia mille e tre!


Verdade que Mozart, para satisfazer uma Áustria puritana, acabou jogando Don Giovanni nos infernos. Tudo bem, não me importo de ir para lá. Mas o personagem que nos fascina é o galantuomo ante o qual cedem todas as mulheres e não aquele que o Commendatore manda para os abismos.

V'han fra queste contadine.
Cameriere cittadine;
V'han Contesse, Baronesse,
Marchesane, Principesse,
Ev'han donne d'ogni grado,
D'ogni forma d'ogni eta.

Nella bionda, egli ha l'usanza
Di lodar la gentilezza,-
Nella bruna la costanza,
Nella bianca la dolcezza!
Vuol d'inverno la grassotta
Vuol d'estate la magrotta;
E la grande, maestosa;
La piccina, ognor vezzosa.


Certo, Don Giovanni é um ente de imaginação. Mas se como ente de imaginação nos fascina é porque seus feitos nos fascinam. Così ne consolò mile e ottocento, diz Leporello.

Delle vecchie fa conquista
Per piacer di porle in lista:
Sua passion predominante
E la giovin principiante
Non si picca, se sia ricca,
Se sia brutta, se sia bella!
Purche porti la gonnella,
Voi sapete quel che fa!


Já que a morte é certa, quero ser consumido pelas chamas ao som de Mozart e Da Ponte. Poliamante, tarado, pervertido? Pensem os presentes o que quiserem. Neste momento, nada importa. Se algo importa, é ter vivido bem.