¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, novembro 17, 2008
 
EUROPA ABANDONA FORMAS E
LIBERA CURVATURA DO PEPINO



Adoro a França. Mas há horas em que ela exibe sua face abominável, a burocracia. Quando fui estudar Literatura Comparada em Paris, o C.R.O.U.S, organismo que me recepcionava, me ofereceu também um curso de francês. Ora, se a língua eu já dominava, um aperfeiçoamento vinha bem. O curso era caríssimo. Mas como BGF – Boursier du Gouvernement Français – eu pagaria apenas zero franco. Claro que eu não dispensaria o curso, que mais não fosse precisava redigir minha tese em bom francês.

Ora, meus problemas de chegada eram outros. Precisava resolver meu permis de séjour junto à Polícia, precisava encontrar apartamento, decidir quais disciplinas cursaria. Considerei que zero franco não faria falta ao caixa da universidade e fui tratando das coisas mais vitais. Resolvidas estas, fui até a universidade pagar meu zero franco. A moça do caixa objetou:
- Monsieur, vous êtes en retard.

Ou seja, eu estava atrasado. Tentei objetar: mas se trata de zero franco, moça.
- C’est pas une question de quantité. C’est une question de délai.
Não era uma questão de quantidade. Mas de prazo. Foi inflexível. Aleguei que perderia o curso de francês, fundamental para uma boa redação de minha tese.
- Tant pis pour vous, Monsieur!

Tanto pior para você. Mas me abriu uma porta. Fale com a madame Lallande, no C.R.O.U.S. Entre com uma demande de dérogation. Ou seja, um pedido de postergamento. Fui lá, entrei com a famosa demande. Madame Lallande indignou-se: não vou fazer uma demande de dérogation por zero franco. Dei toda razão à madame. Mas a moça do caixa continuava inflexível: “c’est pas une question de quantité”.

Me recolhi a um café para pensar. Podia entrar com queixa no ministério da Educação. Seria ainda mais burocracia. Tomei uma atitude de risco. Rubriquei em baixo do papelucho: Dérogation acordée. Signé Mme. Lallande. Estava arriscando minha rica bolsinha. Milagrosamente, passou. A moça do caixa, perplexa: “Je n’ai jamais vu ça”. E quando um burocrata francês diz isso, melhor sair de perto. Se jamais viu, é porque não existe em seu ecúmeno.

Soube mais tarde que outro bolsista fora cobrado por seu banco, pois de sua conta constava zero franco negativo. Ele pagou para ver. Passou um cheque de zero fraco. Et.... miracle: ficou com zero franco positivo.

Mas não era disto que pretendia falar. E sim de pepinos. (O que não deixa de dar no mesmo). Lá pelo ano 2000, escrevi que a comunidade européia se fortalecia com o euro e unificava tanto a moeda como a curvatura do pepino. Leitores céticos achavam que eu exagerava. Bom, consegui agora encontrar a lei que regulamenta a curvatura do pepino.

É o Règlement (CEE) No 1677/88 de la Comission Européenne, segundo o qual há quatro categorias de pepinos, a Extra, a I, a II e III. Além de uma série de outros requisitos, os pepinos devem ser bem formados e praticamente retos. Altura máxima do arco: 10 milímetros por 10 centímetros de comprimento do pepino, para as três primeiras categorias. Assim não sendo, pepinos só servem para o lixo. Para a quarta categoria – no caso, a III – os pepinos ligeiramente curvos podem ter um altura máxima de arco de 20 milímetros por 10 centímetros de comprimento. Mas devem ser condicionados à parte.

Fossem só os pepinos, o absurdo seria restrito a um só vegetal. Os europeus parecem ter um modelo arquetípico de cada vegetal. Qualquer fuga ao arquétipo impede à comercialização do produto. Isto vale para 26 legumes diferentes, desde o aspargo ao pepino, passando pela cenoura, pelo pêssego, pela ameixa e mesmo por uma chicória denominada Witloof, que agora poderão apresentar-se sob formas nodosas, curvas e mesmo bizarras.

Ora, isto significava jogar ao lixo pelo menos 20% de produtos perfeitamente comestíveis, pelo simples motivo de que tinham formas irregulares. Durante decênios, os produtores – e um exército de inspetores bem pagos – tiveram de munir-se de réguas e compassos para verificar a geometria das frutas e legumes.

Segundo o Libération, o 12 de novembro passado vai entrar na história. Pois foi a data escolhida pela Comissão Européia para abolir suas normas absurdas, concernentes ao comércio de legumes. Já não cometerá ilícito quem vende pepinos mais curvos do que a Comunidade. Mesmo assim, nem todos os produtores estão liberados. Os tomates e as batatas continuam submetidos às normas de Bruxelas.

A Europa do Iluminismo e dos Direitos Humanos parece ter-se finalmente rendido aos Direitos Vegetais. O pepino curvo está liberado. Talvez um dia o Velho Continente descubra que zero franco não vale nada.