¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, novembro 25, 2008
 
NOVOS ACHADOS SEMÂNTICOS


Parece que a reforma da língua, prevista para o próximo ano, não será apenas ortográfica. Mas também semântica. Comentei ontem o tal de poliamorismo, palavrinha safada encontrada por advogados chicaneiros para substituir poligamia. Ontem ainda, a imprensa nos brindou com mais dois eufemismos. Surge uma nova moda entre solteiros de Rio e SP: contratar "esposa de aluguel" – diz um grande jornal de São Paulo. Se você entende os meandros do jornalismo paulistano, já terá deduzido que o jornal em questão é o Estadão.

Pois na Folha de São Paulo, a todo redator é proibido grafar a palavra esposa. Enfim, se um entrevistado fala em esposa, será grafado esposa. Mas entre aspas. Não sei quais critérios levaram a Folha a tomar esta decisão, mas concordo com eles. Esposa é palavrinha muito careta, soa à reunião de Lyons Club, culto de evangélicos, coisas do gênero. Conheço até professores universitários que falam em esposas. Horror! Mulher me parece ser palavra mais adequada. Esposa é palavra que nunca pronunciei. Acho que nem mesmo minha mulher. Minha Baixinha, eu preferia chamá-la de minha guria.

Realistas são os espanhóis. Esposa tem o nosso mesmo sentido de esposa. Mas também significa algemas. Assim, se um dia você ler algo como “el hombre fué esposado”, não pense que alguém esteve casado. O mais provável é que tenha sido algemado. Vamos à notícia. Cresce número de mulheres que ganham dinheiro cuidando de casas alheias; serviços vão de botão a bolo. Escreve a repórter Mariana Faraco:

O anúncio é direto. "Você é solteiro? Sua vida está uma bagunça? Você não precisa de uma esposa, precisa de mim." É assim que Cristiane Passos, carioca de 31 anos, oferece seus préstimos de dona de casa prendada, dessas que se esmeram em pregar botão e fazem bolos em fôrma furada. Ela descobriu uma forma de ganhar dinheiro ao preencher uma lacuna nos lares: a falta de tempo - ou paciência - para cuidados domésticos. Como ela, outras mulheres têm oferecido o serviço sob nomes variados - consultora do lar, governanta por um dia ou, como ela prefere, esposa de aluguel.

Os novos lexicógrafos que me perdoem. Mas isso, se a memória não me falha, é o que chamamos de faxineira. Ou empregada doméstica. Cultivo uma Christiane, só que se chama Cristina. É pessoa inteligente, dedicada, vem aos sábados tratar de meu tugúrio e convivo com ela desde fins do século passado. Cuida inclusive de minha biblioteca e exorciza qualquer ameaça de cupins. Mas jamais me ocorreu chamá-la de mulher de aluguel. Muito menos de consultora do lar ou governanta.

Prefiro secretária. Outro dia, quando eu lhe passava algumas noções de astronomia, grau de inclinação do planetinha em torno ao sol, surgimento da vida, ao ir um pouco além da galáxia, ela me fez uma pergunta enorme: “quer dizer então que o universo é infinito?” Embatuquei. Se os cientistas ainda nada decidiram de definitivo a este respeito, não será este que vos escreve que dirá a resposta. Falei das dúvidas sobre a questão. Em suma, ela entendeu as dimensões do problema. Mas não era disto que queria falar.

Bom, se a nova profissão se chama esposa de aluguel, surge naturalmente a questão: e aqueles serviços inerentes às tais de esposas, como é que ficam? Não se iludam os patrões das esposas de aluguel:

E que ninguém confunda os papéis. É que alguns perguntam se estão incluídas "todas" as atribuições de esposa. Educadamente, Christiane diz que não. E nada de discutir relação."Sou esposa, mas sem os problemas de um relacionamento", avisa ela, que é separada. "Costumo dizer: quando a mulher faz tudo isso de bom grado, não tem valor. Se pagarem, valorizam." Tanta dedicação tem preço, de acordo com a exigência do "marido". "Mas não saio de casa por menos de R$ 50."

Christiane está falando de R$ 50 por hora. Numa jornada de oito horas, já ganhou 400 reais. Mais de um salário mínimo por dia. Ora, nem professor universitário ganha isso. O que está acontecendo hoje, em São Paulo, é o que aconteceu há muito na Europa. Os serviços domésticos se tornaram extremamente caros, a ponto de só uma pessoa em situação econômica muito boa poder conseguir contratar uma faxineira. Minha Cristina, com suas faxinas diárias, ganha por mês quase o piso de um jornalista. E ganha muito mais que as professoras da rede pública. Ao que tudo indica, moças de classe média descobriram este filão. Para ter uma renda decente ao final do mês, abandonaram veleidades de status. Claro que não faz bem ao ego apresentar-se como faxineira. Melhor esposa de aluguel.

Se bem que, cá com meus botões, tivesse eu uma esposa de aluguel, gostaria de ter também aqueles outros serviços inerentes a uma - enfim, vamos lá! - esposa, que Christiane não inclui em sua profissão. Desde os serviços de mesa e cama até cafuné na nuca. Mas aí as coisas se complicam. Surgem obrigações outras e bem mais graves que as trabalhistas. De esposa de aluguel a esposa de fato, basta uma ação na Vara de Família. O que está acontecendo é que juízes e jornalistas estão embaralhando conceitos para legalizar desde a poligamia até profissões dúbias - ou pelo menos mal definidas - para satisfação do ego dessa coisa chamada classe média. Claro que lá embaixo da escala social não existe poliamor. É galinhagem mesmo.

Não bastassem as esposas de aluguel, a imprensa está criando uma nova figura, o marido de aluguel. São “maridos” que atendem até homens.

Há mais tempo no mercado, os chamados "maridos de aluguel" surgiram para resolver um outro tipo de problema doméstico, historicamente sempre a cargo do "homem da casa": trocar uma lâmpada, consertar o chuveiro, mexer na calha. Há centenas deles em todo o País. E, agora, alguns correm o risco de acumular funções "femininas". "As clientes me perguntam se conheço alguém que organize armários ou que conserte cortinas", conta Valdir José Peres, de 46 anos, que há três criou a Marido de Aluguel, em São Paulo.

Ora, ora, de meus dias de jovem, isso se chamava factótum. “Indivíduo cuja função é ocupar-se de todos os afazeres de outrém”, diz o Houaiss. Claro que o conceito vai bem além de trocar torneiras ou antenas parabólicas. Meu factótum poderia ser alguém que se ocupa inclusive de minha vida econômica ou bancária. Felizmente não tenho vida econômica complicada. Vamos ficar então no conceito mais estrito. Lá em Dom Pedrito tinha um famoso. Era o “Faz-se-tudo-menos-forno”. Atendia por Facitudo. Menos forno se explica. É que nunca conseguira construir um forno eficaz. O resto ele traçava. Era homem de talento, talento que foi herdado por seu filho, oboeísta na Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. Quer dizer, Dom Pedrito produziu um oboeísta. Filho do Facitudo.

Na França, é o que se chama de bricoleur, aquele profissional que trata de todos os probleminhas de uma casa. Cobram caro e são muito requisitados. Quem entende de bricolagem em Paris não arrisca passar mal. Mas ninguém falaria de "mari à louer". Bricoleur, tout simplement. Aqui no meu prédio, o factótum chama-se “seu” Irineu. Ele conserta tudo, desde encanamentos a pinturas ou derrubada de paredes. É pedreiro, encanador, chaveiro, pintor. Cobra caro e deve ter ganhar muito bem. Para agendar um conserto com “seu” Irineu, às vezes preciso esperar dez dias. Para os problemas elétricos, um outro profissional atende o condomínio. Mas é óbvio que a ninguém ocorreria chamar o “seu” Irineu – ou o nosso eletricista – de marido de aluguel.

Por falar em dicionários, o Houaiss registra bricolagem. Se registra bricolagem, podia muito bem registrar bricoleur. Ou bricoleiro, para ficar no espírito da língua. Define melhor o ofício do que essa impropriedade chamada marido de aluguel.

O Brasil é extremamente criativo quando se trata de criar profissões. Mais um pouco, e estarão devidamente regulamentadas por lei as profissões de esposa e marido de aluguel. Teremos quem sabe sindicatos de esposas e de maridos de aluguel, com direito a nomear juízes trabalhistas sem formação alguma em Direito. Cristina e "seu" Irineu que se cuidem. Dentro de pouco, estarão exercendo profissões ilegais.

Os dados já foram lançados pela imprensa. Agora é só esperar para ver.