¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, novembro 20, 2008
 
O autor esquecido:
OCTAVE MIRBEAU *



Uma tarde depois do jantar, encontramo-nos todos reunidos na ponte à volta de Clara, deliciosamente estendida numa rocking-chair. Uns fumavam, outros sonhavam... Todos tínhamos no coração o mesmo desejo de Clara; e todos, com o mesmo pensamento de posse ardente, seguíamos o vaivém dos dois pezinhos, calçados de chinelitas rosa que, com o balanço da cadeira, saíam do cálice perfumado das salas, como pistilos de flores... Não dizíamos nada... E a noite era de uma doçura feérica, o barco deslizava voluptuosamente no mar como sobre seda. Clara dirigiu-se ao explorador...
- Então! – disse, com uma voz maliciosa. – Isso não é brincadeira? ... Comeu mesmo carne humana?
- Claro que sim! – respondeu orgulhosamente e num tom que lhe conferia uma indiscutível superioridade sobre nós – come-se o que aparece...
- Sabe a quê? – perguntou ela, um pouco enjoada. Ele pensou um instante... Depois, esboçando um gesto vago:
- Meu Deus! – disse – como lhe hei-de explicar? Imagine, adorável miss. Imagine um porco um pouco marinado em óleo de noz...
Negligente e resignado, acrescentou:
- Não sabe lá muito bem... de resto não se come por gulodice... Prefiro uma perna de carneiro ou bife...
- Claro – anuiu Clara.
E como se quisesse, por delicadeza, diminuir o horror dessa antropofagia, quis precisar:
- Porque com certeza só comiam carne de negro!...
- De negro? Pf!... Felizmente, querida miss, nunca fiquei reduzido a essa dura necessidade... Nunca nos faltavam brancos, graças a Deus. O nosso séquito era numeroso e em grande parte constituído por europeus... marselheses, alemães, italianos... um pouco de tudo... Quando tínhamos muita fome abatia-se um da escolta... de preferência um alemão... O alemão, divina miss, tem mais gordura que as outras raças... e alimenta mais... E depois, sempre era um alemão a menos para nós, franceses!... O italiano, esse, é seco e duro, cheio de nervos...
- E o marselhês?
- Pf! o marselhês é elogiado exageradamente... cheira a alho... e também, não sei porquê, a suarda... Dizer que não satisfaz?... não... é comestível, nada mais.
Voltando-se para Clara, com gestos de protesto, insistiu:
- Mas negro... nunca!... creio que teria vomitado... Conheci pessoas que tinham comido... Adoeceram... O negro não é comestível... Há até alguns, asseguro-vos, que são venenosos...

* O Jardim dos Suplícios, Lisboa, Editorial Estampa, 1972