¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, novembro 10, 2008
 
PRAGAS URBANAS


Há países e governos tentando proibir o consumo de cigarros em lugares públicos. É uma opção. Se bem que, se alguém quer destruir-se, não vejo como isto possa ser impedido. As campanhas antitabagistas alegam a proteção dos fumantes passivos. Que estes estariam expostos aos mesmos riscos do fumante ativo. As estatísticas são fartas. Não sei. Em primeiro lugar, sempre fico com um pé atrás quando me falam de estatísticas. Em segundo, desde que nasci – e isso já faz seis décadas – sou um fumante passivo. Meu coração e pulmões estão ótimos. Adoro fazer exames de coração e pulmões, só para ouvir elogios dos médicos. Não é sempre que, aos sessenta anos, a gente tem órgãos a serem louvados.

Nunca fumei em minha vida. Quando adolescente, certa vez pus um cigarro na boca. Não gostei, joguei-o fora. Nasci entre fumantes, vivi toda minha entre fumantes, passei minha adolescência vendo filmes onde era difícil saber quem fumava mais, se o mocinho ou o bandido, e jamais me ocorreu fumar. Em minha casa, sempre tenho cinzeiros para quem fuma. Mas – afinidades eletivas obligent – praticamente ninguém fuma em meu pequeno círculo de amigos. Ah! De modo geral, também não dirigem. Tenho vivido, ultimamente, entre pedestres inveterados e não-fumantes.

Não me queixo de pessoas que fumam em bares. Verdade que há alguns bares muito fechados e com excesso de fumantes onde é difícil ficar por muito tempo. O Hawelka, em Viena, por exemplo. Ali a barra é pesada. Uma hora de permanência e no outro dia você tem de mandar lavar a roupa. Na Europa, estive em mais alguns, principalmente na França e Espanha, onde o fumo era excessivo. Mas são exceções. Hoje, não existem mais.

Nunca vi no entanto autoridades ou ONGs se manifestarem contra uma das piores pragas urbanas que estão invadindo todos os espaços públicos, a televisão. Há lugares em vamos espontaneamente, como bares ou restaurantes. Teoricamente – e apenas teoricamente – podemos escolher ambientes sem a maldita telinha. Mas há lugares em que temos de ir compulsoriamente. Consultórios médicos, sem ir mais longe.

Quando vivia em Florianópolis, anos 80, tive um problema no cotovelo. Ficou roxo e escamado. Fui procurar um ortopedista. Primeira providência, escolher um médico cujo nome me garantisse que não era ilhéu. Achei. Dr. Panagiottis. Deve ser grego, pensei. Então vamos lá.

Na exígua sala do consultório, quase me batia na cara uma televisão mostrando desenhos animados japoneses, em alto volume. Eu era o único cliente do consultório. Pedi pra moça desligar. "De jeito nenhum. E tem mais. Se o senhor fizer tratamento aqui, na sala de fisioterapia tem mais duas". Considerei um atrevimento, mas relevei. Falo com o médico, pensei, e faço essa analfabeta desligar a televisão.

Ledo engano. Panagiottis me recebeu e fui logo dizendo:
- Dr., estou com um problema, não sei o que é, mas antes de falar de meu problema, quero falar de um outro, aquela televisão na recepção.
- Que é que tem a televisão?
- Bom, é que eu não gosto de televisão, acho um insulto televisão na cara do cliente. Se a moça não desligar a televisão, não volto mais aqui.
- Gozado, o sr. é o primeiro cliente que reclama.
- Então é a primeira vez que chegou vida inteligente a seu consultório.
Ele ficou perplexo. Pedi que me indicasse algum outro médico.
- Posso indicar. Mas todos têm televisão no consultório.
- Pois então vou a Porto Alegre.

Imaginei que estava tratando com alguém, no mínimo, oriundo da Grécia. Depois descobri a história. Por ocasião da construção da ponte Hercílio Luz, no início do século, o governo andou contratando escafandristas gregos. Os descendentes de Ulisses, Homero, Platão, Sócrates e Aristóteles gostaram da ilha e acabaram ficando por lá. As novas gerações se catarinizaram irremediavelmente. Em verdade, eu estava falando com um ilhéu abominável. Assim sendo, ó hipotético leitor de Santa Catarina, muito cuidado ao escolher um médico de sobrenome grego. Provavelmente é um ilhéu atroz. Vai daí que a mancha sumiu e não precisei ir a Porto Alegre. Mas fiquei sabendo que consultórios médicos em Florianópolis sempre terão o maldito aparelhinho na sala de espera.

Aqui em São Paulo, ao chegar, fiz outro escândalo. Fui consultar um alergologista, de novo a maldita televisão. Pedi pra moça desligar. Ela disse que não desligava. "A questão é muito simples, moça. Vai lá falar com o médico. Se não desligar, vou buscar outro". Ela foi lá, o médico mandou desligar. Furiosa, saiu e me deixou sozinho na sala. O silêncio a levava ao pânico.

Mas isso faz quase vinte anos. Tive de me render. A clientela é quem exige televisão. O mundo contemporâneo está repleto de brutos que não suportam o silêncio. Hoje, peço apenas pra baixar o volume. De preferência, me sento embaixo da televisão. Pois os movimentos na tela acabam atraindo o olhar. Fiz ainda uma lista dos restaurantes que não têm televisão. São os meus diletos, embora às vezes caia nalgum que tem. Sem som, até que passa. Merencória conclusão: paga-se muito caro em São Paulo para freqüentar um restaurante sem televisão.

Depois me acusam de eurocêntrico. Ora, é bastante raro encontrar televisão em bares europeus. Embora já existam. Lembro que, em 2000, em minha primeira viagem à Noruega, desembarquei em Oslo em um feriadão. Busquei um grande restaurante, em meio a um parque. Não conseguia acreditar no que via. Eu, que abominava os bares brasileiros por sua mania de televisões, me deparei com um bar com oito telões imensos, todos transmitindo futebol. Havia um campeonato europeu naqueles dias e os hiperbóreos noruegueses haviam-se rendido à estupidez do Terceiro Mundo.

A crônica gastronômica paulistana sempre indica se um restaurante tem ou não estacionamento, se aceita este ou aquele cartão de crédito, se tem áreas para fumantes e não-fumantes. Jamais vi jornal que informe quais casas têm ou não têm televisão. Seria uma informação importante, que inclusive selecionaria clientes. Os brutos optariam pelos restaurantes com tela e nos que não a tivessem sempre teríamos chance de privar com pessoas inteligentes.

Ocorre que o mundo está se manifestando cada vez mais hostil a quem prefere o silêncio. O nível de ruído que uma pessoa suporta, dizia Schopenhauer, é inversamente proporcional à sua inteligência. Assino embaixo. E vou freqüentando, enquanto existem, aqueles restaurantes onde o silêncio só é quebrado por vozes humanas e tinir de talheres.