¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, dezembro 23, 2008
 
ESSA MILENAR ESTUPIDEZ


A propósito da crônica “Bíblia vê nas mulheres imundície e submissão”, escreve um leitor:

Agora vc está fazendo o papel de falso moralista, Janer. Você bem sabe que a Bíblia sofreu diversas alterações com o passar dos séculos, de acordo com o pensamento dos líderes da época. Você ao menos sabia que padres foram proibidos de casar para que a igreja não precise sustentar suas famílias? Então não acho que vc deva basear seu texto neste livro cheio de contradições, como é o caso das mulheres. Você, como jornalista, sabe muito bem que os tempos mudam, e desde a "versão final" da Bíblia até hoje, muita coisa mudou. Ninguém, em sã consciência, vive de acordo com a Bíblia ao pé da letra... não nos dias de hoje! Então creio que o senhor deva procurar argumentos mais convincentes ao invés de tentar expôr ao ridículo a opinião dos seus leitores, baseando-se em textos que ninguém mais considera.

Engraçado como, quando nos convém, buscamos no absurdo a base para nossos argumentos (e isso acontece todos os dias).

José


Não é bem assim, meu caro. Que a Bíblia sofreu diversas alterações com o passar dos séculos, isso é verdade. A primeira e mais grave das alterações foi transformar o Pentateuco, livro politeísta, em monoteísta. Substituiu-se a monolatria - culto de um só deus nacional - pelo monoteísmo, culto de um deus único. Já comentei o assunto. Em crônica passada, citei um trecho do Gênesis: “Sucedeu que, quando os homens começaram a multiplicar-se sobre a terra, e lhes nasceram filhas, viram os filhos dos deuses que as filhas dos homens eram formosas; e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram”.

Um leitor atento implicou com os deuses, assim no plural. Que em sua Bíblia está “os filhos de Deus”. De fato, nas traduções ao português que tenho em minha biblioteca, assim consta. Tanto na Bíblia de Jerusalém, quanto na edição pastoral publicada pelas Edições Paulinas. Também na editada pelo Centro Bíblico de São Paulo, a partir da versão francesa dos Monges Beneditinos de Maredsons, Bélgica. O mesmo consta de minha bíblia eletrônica, a reputada tradução de João Ferreira de Almeida.

É que usei a tradução proposta por Jean Soler, “les fils des dieux”. Como os judeus têm mais rigor quando se trata da palavra divina, fui consultar a Torá. Lá está: “os filhos dos senhores”. Melhorou um pouco mas não muito. O plural é mantido. Mas que senhores são esses que se opõem aos homens? Mistério profundo. Fui buscar então em minha tradução francesa da Bíblia, editada pela Alliance Biblique Universelle. Lá está: “les habitants du ciel”, também no plural. Mas quem são esses habitantes do céu cujos filhos acharam belas as filhas dos homens? O mistério persiste.

Ora, os deuses eram muitos na época do Pentateuco. Jeová é apenas um entre eles, o deus de uma tribo, a de Israel. Escreve Soler: “Ora, nem Moisés nem seu povo durante cerca de um milênio depois dele – os autores da Torá incluídos – não acreditavam em Deus, o Único. Nem no Diabo”.

Esta é uma alteração realmente grave nos textos bíblicos. Quanto às referências à imundície intrínseca das mulheres, estas não foram alteradas desde o Levítico e o Deuteronômio até nossos dias. Pode ser que os católicos não liguem mais para isto. Afinal, divórcio é proibido e os católicos se divorciam. Homossexualismo é pecado e os padres não poupam os menininhos. Aborto é pecado punível com excomunhão e as católicas continuam abortando. Só no Brasil, são mais de milhão de abortos por ano. E por favor, que ninguém pretenda colocar essa cifra na contabilidade dos ateus. Não há tantos assim no Brasil. Nós somos raros. Mesmo assim, os católicos continuam cultuando o Livro. As citações que fiz, a respeito da condição imunda das mulheres, constam das traduções contemporâneas da Bíblia.

Já os judeus levam o Livro mais a sério e se pautam pelas antigas prescrições. Vivo em Higienópolis, bairro judeu, cercado por mais de uma dezena de sinagogas, e observo a raça de perto. Um judeu jamais dá a mão à sua mulher. Ela pode estar imunda, isto é, menstruada. Marta Suplicy, quando prefeita de São Paulo, foi certa vez a uma reunião com rabinos. Como todo político, foi logo estendendo a mão. Os rabinos, polidamente, as conservaram coladas às costas. Vexame total. O único a apertar a mão da petista foi Henry Sobel, o ladrão de gravatas.

Comentei este fato há dois anos. Um judeu, assessorado pelo rabinato de Higienópolis, respondeu-me:

O judaísmo é feito de valores. Um destes é o respeito máximo a mulher, que nada tem a ver com seu ciclo menstrual. Um homem, mesmo tendo 100% de certeza de que uma mulher não está menstruada, e ainda que seja sua esposa; mesmo assim, pelas leis mais estritas judaicas, não pode cumprimentá-la em público. E porque? Por questão de recato. Para preservar carinhos e troca de afagos para os momentos íntimos e particulares com a sua amada. Em uma época onde mulheres reclamam que são tratadas como objetos, onde a propaganda abusa da super-exposição sexual da mulher e etc…., o judaísmo trata a mulher como um ser elevado a ser respeitado e admirado.

Não é bem assim. Para começar, o leitor está acusando de falta de recato toda a mulher que dá sua mão ao amigo, namorado ou marido na rua. O que nada tem a ver com falta de recato. Para responder a meu interlocutor judeu, fui até uma livraria judaica do bairro, a Sêfer, e comprei uma Torá, edição de 1962. Custou caro mas valeu a pena. Lá está, comentado pelo rabino Meir Matzliah Melamed, o trecho do Levítico que considera imunda a mulher menstruada. Escreve o rabino em pé de página:

Dias da impureza de sua indisposição - Essa impureza da mulher, motivo pelo qual ela se afasta do marido por sete dias durante a menstruação, chama-se em hebraico Nidá, o que significa “separação” e nela está proibida toda intimidade com seu marido. As leis da Nidá baseiam-se naquilo que está escrito no Levítico 15:19-24. Além disso existe um tratado completo no Talmud com o mesmo nome, dedicado à amplificação dessas leis.

Os cientistas maravilham-se diante do fato de que os antigos hebreus praticavam o mais alto padrão de higiene sexual reconhecido nos tempos atuais. Tem sido demonstrada também a existência de uma substância tóxica no soro do sangue, na saliva, na transpiração, na urina e em todas as outras exudações da mulher durante o período de menstruação.


Ou seja, até o suor da mulher menstruada é imundo. O sofá onde ela senta se torna imundo, a cama onde ela deita se torna imunda. Quem toca sua mão, torna-se também imundo. Muita coisa mudou, diz meu indignado leitor. Mas não a Bíblia. Nem a cristã, nem a hebraica. Pessoalmente, penso que a Igreja de Roma – como também os judeus – há muito deviam ter abandonado como código normativo o Antigo Testamento, esse livro cheio de ódio, genocídio, massacres e preconceitos. Aliás, os católicos deveriam abandonar também o Novo, onde Cristo e Paulo nos ameaçam com o fogo eterno.

A verdade é que nem judeus abandonam a Torá e a Tanak, nem católicos abandonam o Antigo e Novo Testamento. Então, que assumam suas besteiras. “Ninguém, em sã consciência, vive de acordo com a Bíblia ao pé da letra... não nos dias de hoje!” – escreve meu leitor. Então que a joguem fora, ora bolas!

Em meu artigo, sequer comentei os textos bíblicos. Me ative apenas a reproduzir, ipsis litteris, essa milenar estupidez.