¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

quarta-feira, dezembro 10, 2008
 
MADONNA, O VIDRO E O VENTO


Há pessoas ilustradas – e não são poucas – segundo as quais os Beatles transformaram culturalmente o mundo. Que estes senhores ilustrados me desculpem: não notei. Sou contemporâneo destes rapazes e não vi transformação alguma promovida por eles. Um amigo me interpela:

- E “Imagine”? Não revolucionou a cultura? Conheces “Imagine”?

Conhecia. Aos leitores para quem os Beatles são inofensivos fantasmas do passado, reproduzo a letra. Em português.

Imagine que não exista nenhum paraíso,
É fácil se você tentar.
Nenhum inferno abaixo de nós,
Sobre nós apenas o firmamento.
Imagine todas as pessoas
Vivendo pelo hoje...

Imagine que não exista nenhum país,
Não é difícil de fazer.
Nada porque matar ou porque morrer,
Nenhuma religião também.
Imagine todas as pessoas
Vivendo a vida em paz...

Imagine nenhuma propriedade,
Eu me pergunto se você consegue.
Nenhuma necessidade de ganância ou fome,
Uma fraternidade de homens.
Imagine todas as pessoas
Compartilhando o mundo todo.

Você talvez diga que sou um sonhador,
Mas eu não o único.
Eu espero que algum dia você junte-se a nós,
E o mundo viverá como um único.


Ora, é muita ingenuidade imaginar que uma letra utópica e infantil, com leves laivos de ateísmo e anarquismo, possa transformar o mundo. O que transforma o mundo é o pensamento, a filosofia, a tecnologia, as revoluções. Se me afirmarem que a descoberta de algo hoje tão corriqueiro como o vidro transformou o mundo, concordo plenamente. Não fosse o vidro, nossas casas seriam tugúrios fechados e sombrios, o pensamento seria prejudicado pela miopia de escritores e leitores e pouco ou nada conheceríamos do universo. Todas as descobertas espaciais de nossos dias dependem fundamentalmente dessa prosaica descoberta.

Segundo alguns historiadores, o vidro teria sido descoberto acidentalmente por mercadores fenícios, há mais de quatro mil anos. Quando atravessavam o deserto, utilizavam placas de nitrato de sódio sob as panelas durante o preparo dos alimentos. Começaram então a perceber no solo, a formação de um material desconhecido: o vidro. Já segundo outros historiadores, seriam navegadores fenícios os autores do achado. Ao acenderem fogueiras em praias onde havia as duas matérias-primas básicas (a areia e o calcário de conchas), observaram que após sofrerem a ação do calor, o solo abaixo da fogueira resultava em um líquido transparente: o vidro.

Que o vidro constitua uma revolução, não há sombra de dúvidas. Que uma cançoneta boba oriunda do universo do show business possa revolucionar o mundo, isto está fora de cogitação. A única revolução – se de revolução se pode chamar – que atribuo aos Beatles foi o incentivo público ao consumo das drogas. Os grandes cartéis, penhorados, agradecem. Essa juventude drogada de nossos dias, que vive entre a delinqüência e a morte, este sim é o grande legado daqueles meninos condecorados pela rainha da Inglaterra.

Platão, Aristóteles, Cristo, Maomé produziram profundas modificações na cultura. Alexandre ou Napoleão também. Sem entrar no mérito da questão, é óbvio que Hitler, Lênin, Stalin ou Mao provocaram grandes mutações na história e na geografia. Hitler terá sido o mais operoso deles. Em cerca de 15 anos de poder, mudou o mapa de um continente.

Mas não era de história que pretendia falar. E sim de uma frase proferida por Madonna em uma entrevista, agora há pouco, na televisão. Cito de memória: “Eu chacoalho as pessoas e provoco mudanças na cultura”. Talvez a frase não fosse bem esta, mas este era o sentido.

Que mudanças na cultura produz esta senhora? Seus shows são performances mais ou menos eróticas, mais para o gênero sadomasoquista do que para outras formas de erotismo. Ora, a pornografia vai bem mais longe. A moça alimenta-se também de coreografias heréticas que, ao provocar a ira de religiosos, só lhe rendem mais dólares. Para começar, seu nome artístico já é uma blasfêmia. É uma maneira boba de criticar as religiões. Religião se critica com pensamento, com tecnologia, não com provocações eróticas. Muito menos com as cançonetas bobas da banda inglesa. A descoberta da pílula, por exemplo, foi muito mais eficaz que cem mil discursos contra o obscurantismo.

Ao que tudo indica, o sucesso subiu-lhe à cabeça. Como nunca falta jornalista venal – ou talvez babaca, o que é mais provável – para afirmar que Madonna provoca transformações culturais, a moça acabou acreditando que provoca transformações culturais. Um dos atouts de Maddona é sua juventude e seu corpo. Mas a juventude morre e o corpo fenece. Mais dez ou vinte anos e Madonna será figura de museu de cera, merencória lembrança de uma época fútil.

De seu pensamento – mas que pensamento? – não restará nada. Talvez reste sua interpretação de Evita Perón, no musical Evita, que, tenho de admitir, é soberba.

E o resto é vento.