¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, dezembro 27, 2008
 
NO PERAU DO TIO ÂNGELO (IX)


Tenho dois aniversários a cada ano. O verdadeiro é em abril. O oficial, em julho. A bem da verdade, não comemoro nenhum dos dois. Prefiro uma boa janta regada a bom vinho com alguma pessoa mais íntima, e nada mais que isso. Por que dois aniversários? Ora, naqueles rincões os cartórios ficavam a léguas de distância. Não tínhamos carro, aliás meus ascendentes jamais o tiveram. Nem pais nem avós. Ou seja, de Adão e Eva para cá, minha estirpe não soube o que é um carro. Eu, muito menos.

Ir até um cartório significava um dia de cavalgada. Que poderia ser dia perdido. Nunca se sabia se a cria iria vingar. Melhor esperar para ver. Três meses após meu nascimento, meus pais consideraram que a cavalgada não seria inútil.

O grupo escolar ficava a uma légua de nosso rancho. Explico aos leitores urbanos: légua são mais ou menos seis quilômetros. Normalmente ia a pé, arrebanhando a piazada pelo caminho. No inverno, devido à geada, íamos de pés nus, para não molhar as alpargatas. Perto da escola, lavávamos os pés numa sanga e só então púnhamos calçados. Nunca me queixei do frio e até hoje sinto alguma vontade de sair quebrando geada pelos pastiçais. Outras vezes, ia na aranha que levava minha mãe, professora, ao colégio. Mas gostava mesmo era de quebrar geada.

CLOTILDE *

Lembras, Clotilde, daquele guri boca suja e sem respeito que fugia para o chircal quando chegavam visitas? E que só voltava do mato para exibir aos visitantes - especialmente se eram moças - seu vasto repertório de nomes feios? Eu já não lembro muito dele. Entre aquela época e hoje se passaram mais de trinta anos, que dão a impressão de trezentos. Mas sei que lembras dele melhor do que eu.

Me dá teu braço. Vamos passear pelos campos de Ponche Verde e Upamaruty. Rever a sanga onde pesquei minhas primeiras joaninhas. Os mundéus para onde mangueei perdizes. A sombra da parreira onde me ensinaste as primeiras letras. A cacimba em que me debrucei para beber a água gelada do manancial. Vamos passear em silêncio, não sou de muito falar. Sabes que no campo não se admite intimidades entre pais e filhos. Se hoje tenho a coragem de te falar, decerto é porque estou longe.

Olhando paras trás, tudo me parece sonho. Lembras de quando escarafunchavas meus pés arrancando rosetas e espinhos de tala e coronilha? Sinto saudades daqueles espinhos. Aquele cascão grosso que protegia meus pés é hoje uma pele fina, sensível até mesmo a grãos de areia. Forçado pelas convenções, ao pôr sapatos me sinto um pouco como cavalo ferrado. Mas a cidade assim o exige.

Me passa um mate. Vamos sentar na frente da Casa, ao lado da pedra onde Canário afiava facas e tesouras. Enquanto o sol vai caindo e as sombras avançam como fantasmas tristes coxilha arriba, vamos corujar a primeira estrela, ouvir a canção dos grilos, ver as ovelhas se aprochegando em fila para o abrigo de uma canhada.

Não sei se imaginaste alguma vez as andanças futuras daquele guri xucro. Eu jamais imaginaria. Se, naquela época, me dissessem que há um país onde o sol não se põe, eu insultaria o mentiroso. E não é que um dia fui parar lá? E à meia-noite o sol ameaçava esconder-se, mas era só ameaça, continuava rodando quase paralelo ao horizonte.

Lembro de ti muitas vezes atrelando o tordilho à aranha. Li há algumas semanas, num jornal, a queixa de umas professoras rurais que tinham de ir à escola a cavalo. Gente boba, não é? Durante trinta anos, alfabetizaste duas gerações, graças ao tordilho. E nunca ouvi de ti queixa alguma.

Devo ter sido bom aluno, não é verdade? Uma das coisas que lembro muito foi daquele quinto ano primário. Tirei o primeiro lugar da aula. Foi barbada. Pra começar, só tinha dois alunos, eu e a Chica do tio Martim. Como viriam fiscais da cidade para os exames e a turma não estava bem preparada, as professoras nos deram a prova num domingo, para decorar em casa. Não sou ruim de memória, respondi tudo em dois minutos.

Lembras da professora que pulou o alambrado atrás de nós, quando a aranha já descia o lançante da coxilha? Dona Ivone Garrido, de Dom Pedrito. "Espera, pára, o teu filho é um gênio, tens de mandar esse guri pra cidade". Pois é! Mandaste o geninho pra cidade. Lá já foi mais difícil continuar sendo o primeiro da classe. As professoras jamais deram a alguém as provas antes do dia do exame. Resultado: no fim do ano, um monte de reprovações. Por isso que o ensino moderno anda em crise.

Mais um chimarrão antes de a gente terminar este passeio! Já está ficando tarde, tenho de voltar ao presente. Só há um lugar no mundo para onde sempre volto com o coração aos pulos: Ponche Verde. Qualquer dia estarei de novo aí. Não é por meu gosto que vivo nos povoados. Sabes, já faz alguns anos que não dou uma boa galopada nem vejo um nascer de sol. Há muito não ouço um galo cantar nem vejo galinhas ciscando o pátio depois de uma chuva. Já nem sei se formigas de asa existem ou são lenda. Esqueci o gosto de um tatu assado na casca. Bebo um leite de sabor desagradável que nada mais tem a ver com um apojo quentinho.

Virei bicho da cidade, mãe. Mas qualquer dia desses, o diabo sai de trás da porta, ato a mala nos tentos e me mando à la cria!

* Porto Alegre, Folha da Manhã, 08/05/76