¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, dezembro 03, 2008
 
NO PERAU DO TIO ÂNGELO (V)


Antes do perau, um pouco mais de tio Ângelo. Camponês, solteirão, creio que jamais conheceu cidade. Herdou a casa senhorial da sucessão e era para lá que os irmãos e primos rumavam, à noite, para chimarrear, ouvir causos e – o mais importante – ouvir rádio. Até hoje lembro o prefixo de uma rádio argentina, CLRX – CLR1 (traduzindo: ce ele erre equis ce ele erre uno) – Rádio Belgrano de Buenos Aires, para el mundo. A Casa – como chamávamos – ficava mais ou menos a um quilômetro de meu rancho. Lá pelo fim da noite, começavam os causos de cemitério, almas penadas, mulas sem cabeça. E eu tinha de voltar para casa, naquelas noites enluaradas. Voltava voando pelas canhadas, apavorado, com um ser qualquer – sei lá o que era – colado a mim e respirando junto a meu pescoço. Pânico total, que só cessava quando eu entrava em casa. O que me assustava mesmo, creio, era minha sombra, que não se desgrudava de mim e corria com minha mesma velocidade.

Naqueles dias, sempre tive problemas em passar à noite por cemitérios. Vivia em Upamaruty. Quando voltava a cavalo da casa meus tios em Ponche Verde, tarde da noite, ao aproximar-me de um cemitério começava a suar frio. Pior ainda, o cavalo começava a bufar, assustado. Ou assustado estava eu e achava que era o cavalo. A pior das horas era a meia-noite. Juro que sentia uma alma penada em minha garupa. Sentava o rebenque no coitado do pilungo e aquela sensação gelada na nuca só sumia quando me afastava do cemitério. Vivi noites e noites de terror, assombrado pelos causos do tio Ângelo. Foram necessários alguns anos para conjurar este medo a cemitérios. Hoje, os visito com muito prazer. Fácil criar divindades. Basta incutir numa criança o medo ao sobrenatural.

Em 77, quando ia para a França, levei minha Baixinha para conhecer aquele meu universo. Pegamos um Fusca em Dom Pedrito e rumamos até a Linha Divisória entre Uruguai e Brasil. Uma légua além do obelisco que marca a assinatura da humilhação farroupilha nos campos de Ponche Verde, olhando ao longe o vulto da Casa, coração num ritmo esquisito, o Fusca atolou num barral. Justo em frente à casa do Hilário da Siá Cantilha, que há uns trinta ou mais anos estava doente e às portas da morte. Era tuberculose. Em meus dias de colégio primário, as professoras me recomendavam passar de longe pelo rancho do Hilário e jamais beber água de seu poço, mesmo que a sede apertasse. Pois lá estava o Hilário, eterno, apoiado em um moirão, em carne e osso, mais osso do que carne, era verdade, mas mais rijo que o moirão.

Abandonamos o Fusca no lamaçal. Debrucei-me no alambrado e me dispus a alguns dedos de prosa. Eu havia abandonado há cerca de trinta anos aqueles pagos e tinha a impressão que Hilário jamais se afastara daquele poste. Falou de sua doença. Que quase havia batido as botas no ano anterior, fora até mesmo levado para um hospital em Dom Pedrito.

— Mas eu senti que iam me matá naquele hospital. Mal senti por perto o bafo da Moira Torta, peguei meus trapo e saí como quem roba daqueles quarto branco. Se não fujo, tava morto.

E estaria morto mesmo, pensei. No entanto, ali estávamos charlando, contando as novidades do Ponche Verde, quem havia casado ou morrido. Em minha pressa urbana, me senti definitivamente expulso daquele universo primitivo onde o tempo corria com o vagar de uma lesma, se é que corria. Hilário não entendia porque eu consultava tanto o relógio. Tentei explicar que estava voltando das Europas, onde tudo tinha horário. Hilário era homem informado:

— Já me falaro das Oropa. Fica meio pras banda de Passo Fundo, segundo me contaram.

E ficava mesmo naquele rumo. Deixei Hilário escorado no moirão e fui revisitar minha infância. Mas já era um intruso naquele mundo de tempo infinitamente lento, preguiçoso. À medida que me aproximava do Cerro da Tala, onde estava a Toca da Onça, um nó foi me estrangulando a garganta. Lá adiante, ao oeste, a Casa e o Pau Vermelho. Ao sul, o perau e seus mistérios.

Cheguei à porta da Casa, acocorei-me em uma pedra de amolar facas, e gritei: “Ô de casa!”. Corina, minha prima, veio lá dos fundos. Não me reconheceu, é claro. “O senhor, quem é?” Balbuciei: “Vim ver o tio Ângelo”. Ele não mais vivia. Eu sabia disso. Falei para identificar-me. Ela me reconheceu: “Negrinho!”. Nos abraçamos chorando.

Corininha. Quando ela ia lavar roupas na sanga, eu pegava um caniço de bambu e ia pescar joaninhas. Pescar joaninhas umas ovas. O que queria mesmo era acocorar-me do outro lado do riachinho e ficar olhando, não para as joaninhas, mas para aquela coisa escura e cheia de mistérios, meio que entreaberta, entre as coxas da priminha. Ela sabia que as joaninhas pouco me interessavam e sentia-se muito bem esfregando as roupas no pedregal, frente a meus olhos arregalados.