¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, dezembro 24, 2008
 
O BOM DEUS DOS ATEUS
NÃO ESQUECE DOS SEUS



Ainda a propósito da crônica “Bíblia vê mulher como imundície e submissão”, onde me restrinjo a citar trechos do Livro – e nada mais que isso – acabo de receber mail de um leitor, que se assina como Gabriel:

Eu era assim, radicalmente contra a religião, na pré-adolescência. Depois cresci. Não adianta empurrar garganta abaixo dos outros as nossas idéias. Tem menos sentido ainda fazê-lo no Brasil, onde as pessoas têm leituras bastante razoáveis sobre a religião. Eu queria saber se o autor segue sua própria linha tão puramente a ponto de ignorar o Natal, por exemplo. Nem um presentinho para os netos ou ceia com a família?

Itinerários opostos, meu caro Gabriel. Eu era radicalmente a favor da religião, na adolescência. A religião me foi enfiada a machado na cabeça. Não fui apenas congregado mariano, como também presidente da Congregação Mariana de Dom Pedrito. Foi quando então fiz meu primeiro trabalho em prol da humanidade. Enterrei a congregação em suas contradições e acabei por dissolvê-la. Depois cresci. Se quando congregado pretendia empurrar garganta abaixo minhas idéias, depois disso nunca mais pretendi que quem quer que fosse seguisse alguma idéia minha. Idéias, adoro discuti-las. Apenas isso. Quem quiser que siga as suas. Ou até mesmo as minhas.

Li Nietzsche muito cedo. Considero que Nietzsche tem de ser lido quando se é jovem, de preferência antes dos vinte. Depois, não adianta muito. Ou somos rebeldes quando jovens, ou nunca mais. Ninguém se torna rebelde aos trinta. Já está bem empregado, família constituída, salário e status a defender. Desde meus verdes anos me imbuí da doutrina do sublime alemão. Zaratustra não queria discípulos. Eu também não. Se por ventura os tenho, paciência. Não posso proibir ninguém de concordar comigo. Muito menos de discordar. Faz parte da vida. E também do escrever.

Mas o leitor faz uma pergunta oportuna, particularmente no dia de hoje. Quer saber se ignoro o Natal. Sempre o ignorei. Nasci em um universo pagão, onde religião não tinha vez. Meu clã cultivava as festas juninas, reminiscências ainda vivas do solstício de verão na Europa, quando a peste cristã ainda não infestava o velho continente. Fazíamos as fogueiras de São Pedro, São João e Santo Antonio. Que nunca foram as fogueiras destes senhores, mas cultos pagãos ao fogo, ao sol e à alegria.

Lá nos meus pagos, logo depois do entardecer, ficávamos olhando rumo ao horizonte, esperando que alguém acendesse a primeira fogueira. Acendida a primeira, pontos luminosos iam surgindo de longe em longe, a léguas de distância uns dos outros. A léguas, mas todos unidos na celebração de algo que ninguém sabia muito bem o que era. Confraternização muda e luminosa, unia as gentes dos mais diferentes rincões. Foi o que sobrou do paganismo naquela pampa.

Quanto ao Natal, é redundante dizer, tornou-se uma festa de consumo. A cada dezembro, jornais recomendam dietas e ao mesmo tempo perus e panetones. Jamais comi um peru num Natal e jamais me preocupei com dietas. Como o que costumo comer todos os dias. Os shoppings e mercados populares estão regurgitando de pessoas angustiadas, preocupadas em dar presentes a outros ou a si mesmas. No que a mim diz respeito, nem penso no assunto. Só há duas datas em me recuso a dar presentes a uma pessoa. É no Natal e no dia de seu aniversário. Fora isto, adoro dar presentes. Sempre de surpresa, sem data alguma. Presente com data não tem graça.

Não haverá ceia com família. Dado meu espírito gaudério, desde há muito vivo longe dos meus. Tenho uma filha, é verdade. Ela está aproveitando sua folga no trabalho para visitar a mãe, que vive longe daqui. Quanto à família, tenho um conceito um pouco distinto dos demais.

Família, para mim, não é aquela oriunda de laços de sangue. Até pode ser, mas não necessariamente. Família é aquela que elegi no decorrer de minha vida. Ao longo dos anos, constitui minha pequena família, juntando amigos e amigas em diversas cidades e países. Esses são os realmente meus. As pessoas que elegemos por amizade, afinidades espirituais, carinho. Minha família, de modo geral, é composta de pessoas solitárias. O que é ótimo. Nos Natais, não temos compromisso algum com aquela outra família, a biológica. Sempre que estamos perto uns dos outros, nos reunimos para celebrar nossa solidão solidária.

Minha filha pertence a esta minha família. Não porque seja sangue de meu sangue, mas porque a adoro. É inteligente, culta, ambiciosa e cheia de vida. Então é da família. Coincidiu que hoje está todo mundo longe. Alguns foram para Paris e Itália, outros estão na Suécia ou Finlândia, os mais próximos estão em Salvador, Rio, Florianópolis ou Porto Alegre. É família naturalmente dispersa. Tanto faz! Qualquer dia nos encontramos. Não está escrito em livro algum do mundo que há data para festar. Festa é o dia em que decido que é festa.

Mas o bom Deus dos ateus nunca esquece dos seus. Ontem, quando comprava meus jornais, tropecei com a mais linda de minhas vizinhas. Estás só? – me perguntou. Estou – respondi feliz. Hoje vamos festar com gosto.

Tim-tim, leitor! Bom solstício!