¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, dezembro 21, 2008
 
SOBRE A VENTURA DE NÃO
TER VIVIDO EM MOSCOU (I)



Leitor me pergunta porque eu, anticomunista ferrenho, pedi um dia bolsa para a universidade Patrice Lumumba, em Moscou. Ora, nada tinha a ver com comunismo. Eu queria era sair do Brasil. Fosse para onde fosse. Quanto mais longe, melhor. Quanto mais estranha a língua, mais me atraía o país. A Patrice me parecia a hipótese mais viável. Além disso, eu convivia na Rua da Praia com o Paulo Silveira, que era diretor do Instituto Brasil-URSS em Porto Alegre. Me matriculei então na PUC, em um curso de russo, com o saudoso professor Sergiei Zhukof, um jovem de 94 anos. Nunca vi tanta jovialidade em pessoa tão idosa. Também pudera: Zhukof era esgrimista e campeão de vela, entre outras coisas.

Pedi bolsa também para a Finlândia, Alemanha e Japão. Curiosamente, a bolsa acabou vindo de onde menos eu esperava, da França. Resultado de minha demanda à Patrice Lumumba: minha candidatura foi interceptada e, no final dos 60, fui preso por um delegado em Dom Pedrito, que me interrogou sobre isso. Em verdade, a questão era outra, era um imbróglio sexual. Eu namorava a mulher mais linda da cidade – uma terna bugra guarani que ainda espero reencontrar antes de partir - e um advogado, interessado na moça, me armou uma armadilha de cunho político.

O curioso é que o delegado sabia tudo sobre minha vida. "No dia tal e tal, o sr. lia uma Veja no banco na praça, em frente à igreja, em cuja capa estava escrito CCCP". O delegado era um afrodescendentão, estudava Direito e, mesmo sem ter terminado o curso, já usava anel no dedo. Não é CCCP, doutor (nestes momentos, melhor apelar ao Dr). Em cirílico, é SSSR, Soyuz Sovetskikh Sotsialisticheskikh Respublik. O que o doutor chama de CCCP estava escrito na foto de capa da revista, na camiseta de um atleta das Olimpíadas.

Depus por quatro ou cinco horas. Minha vida foi revirada, de alto a baixo. Só para concluir: eu usava uma espessa barba naqueles anos, muito antes da existência do PT e de a barba ser usada como crachá. Para demonstrar erudição, o afrodescendentão perguntou-me:

- O senhor sabia que sua barba suscita antipatias?
Sabia.
- E por que não corta?
Ora, era verão, a barba começava a incomodar-me. Mas, diante das circunstâncias, decidi:
- Eu até estava pensando em cortá-la. Mas agora, não corto mesmo.

Tive sorte em não receber a bolsa. Primeiro, é claro que não iria aceitar as regras de disciplina da Lumumba. Pra começar, não podia transar as russas. Fui saber isso bem mais tarde, pelo livro de Sérgio Faraco, Lágrimas na Chuva. Não ia dar pé mesmo. Uma das coisas que sempre me fascinou na vida foi ouvir mulheres gemendo em outras línguas. Ora, ouvir gemidos na língua de Dostoievski e Kuprin era para mim uma antecipação do paraíso. Mas minha primeira decepção com o paraíso surgiu antes mesmo de ter resposta da bolsa.

Numa madrugada na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, na lancheria do Matheus, encontrei José Monserrat Filho, que voltava de Moscou, após especializar-se em Direito Espacial. O personagem me fascinava. Eu estava conversando com alguém que falava russo, vivera em um país longínquo e certamente ouvira meninas gemendo em russo. Eu ouvia seus relatos como um cãozinho atento, desejoso de conhecer o mundo.

- Como é que é na Patrice, Monserrat? Cada estudante tem um quarto?

Era meu sonho, um espaço meu para transar as russinhas. Monserrat me jogou um balde de água fria:

- Nada disso. Cada quarto tem três beliches, para seis pessoas.

Ali, meu sonho começou a murchar. Mais tarde, anos 70, quando em Estocolmo, vi do que escapara. Brasileiros que haviam feito curso na Lumumba, após terminar o curso tinham de sair da Rússia. Dada a época, não podiam voltar ao Brasil. Saíam então, de diploma em punho, a lavar pratos na Europa. Eu os chamava, em sueco, de "internationella diskare", lavadores internacionais de pratos.