¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, dezembro 21, 2008
 
SOBRE A VENTURA DE NÃO
TER VIVIDO EM MOSCOU (II)



Sem jamais ter ido a Moscou, tive outras notícias da cidade. Quando vivia em Paris, uma boa amiga telefonou-me de Porto Alegre. “Podes receber meu namorado? Ele está indo para Moscou, vai fazer escala em Paris”.

Claro que podia. O gaúcho chegou, eu o recebi com meus melhores vinhos. Charlamos por pelo menos duas noites. Que vais fazer em Moscou? – perguntei. “Vou fazer arquitetura, na Patrice. Um curso de cinco anos”. Sabes desenhar caixas de fósforos? – voltei à carga. Ele me olhou com um gesto de que eu não merecia resposta. Bom, meu caro, se sabes desenhar caixas de fósforo, já dominas toda a arquitetura soviética. Nem precisa ir.

Ofendeu-se, o gaúcho. Queria ir embora lá de casa. Instei-o a ficar, eu apenas fazia um comentário. Mas predisse: tu vives boa vida em Porto Alegre. Não vais agüentar nem seis meses em Moscou. Despediu-se de mim irritado.

Mês seguinte, chega sua namorada, advogada trabalhista. Iria visitá-lo em Moscou. Ficou um mês esperando pelo visto. Nesse meio tempo, fui lhe apresentando as delícias do capitalismo. Vai daí que, nesses mesmos dias, chega lá em casa um amigo, doutor em Física de plasmas, pessoa admirável, que quando bêbado citava as quatro aporias de Kant ... em alemão. Os dois se entenderam e saíram a viajar pela Itália. Antes de partir para Moscou, ela tomou um banho de capitalismo, dos pés à cabeça. Estava fascinada com o Ocidente. E vacinada contra o socialismo.

Antes de sua partida, manifestei minha preocupação com sua vida sexual em Moscou. Ofendeu-se. Que queres dizer com isso?

- Minha preocupação é onde vais transar com teu namorado.

- Como onde? No quarto dele, é claro.

- No quarto dele, minha querida, tem mais cinco. Não vai ser fácil.

Antes de concluir, uma pequena peça que preguei à moça. Existe em Paris um ônibus chamado PC. Como qualquer pessoa que está em Paris, seja parisiense ou turista, eu tinha uma carte orange, título de transporte que é mais barato do que comprar bilhetes um a um. Vale por uma semana ou mês, conforme você quiser. Na hora de entrar no ônibus, você apenas a mostra ao motorista. Disse pra moça:

- Este é PC, o ônibus do Partido Comunista. Estudante ou operário não paga nada, é só mostrar carteirinha. Tu vais pagar porque não és estudante nem operária.

Ela achou lindo, um país onde o Partido oferecia transporte de graça a estudantes e operários. Nada a ver. PC significa Petite Ceinture, o ônibus que faz o trajeto dos bulevares interiores de Paris. Eu não pagava pelo simples fato de que comprara a carte orange. Soube que ela voltou a Porto Alegre louvando as virtudes do PC francês.

Bom, vai daí que a moça acabou indo ao paraíso socialista. Voltou um mês depois. Como é que foi? – perguntei. Ela não falou muito. Disse apenas que era uma cidade concebida para gigantes. Antes de voltar ao Brasil, fez-me algumas confidências. “Tudo é escasso lá. E não há escolha. Os absorventes higiênicos são enormes”.

Pois é, minha querida. País de gigantes é assim mesmo. Mas a história não termina aqui. Continuamos a trocar correspondência. Era a época das cartas, que demoravam pelo menos uma semana para chegar. Três meses depois, ela me dá notícias de Porto Alegre e fala que o namorado havia decidido voltar, que não via muito sentido em ficar cinco anos estudando agronomia em Moscou. (Agora, era agronomia. O curso inicial era arquitetura). Continuou escrevendo e, ao final, um PS: “Tche, o Rui chegou ontem”.

O bravo militante comunista, que fora à Rússia para um curso de cinco anos, não agüentou nem seis meses, como eu previra. Nos encontramos mais tarde em Porto Alegre. “Viu?” – perguntei –. “Nem seis meses”.

“Ah! Não vou te explicar. Não vais entender”.

Não iria entender mesmo. Só afirmei que ele não suportaria seis meses em Moscou.