¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, janeiro 20, 2009
 
DEUS, SE EXISTE,
PUNE PANACAS



Em uma de suas obras mais metafísicas, A Peste, Camus discute o problema do mal no mundo. A peste se abate sobre Oran, durante meses os esforços para combatê-la se revelam inúteis. Tarrou, um ativista que militou na Europa, mais os médicos Rieux e Castel, o jesuíta Paneloux e também Grand, o empregado da prefeitura, reúnem suas forças para conjurar o mal. Pouco a pouco, Castel consegue descobrir o soro que faz a peste recuar. Para o padre Paneloux, a bondade divina não pode ser posta em questão. Se os homens estão em desgraça, é porque a mereceram. Para salvar sua fé, Paneloux acusa os homens:

"Este flagelo aparece pela primeira vez na história para golpear os inimigos de Deus. Faraó se opõe aos desejos eternos e a peste o faz cair de joelhos. Desde o começo de toda história, o flagelo de Deus derruba a seus pés os orgulhosos e os cegos. Meditem sobre isto e caiam de joelhos".

Paneloux faz uma longa exposição sobre os flagelos que acometeram os homens por vontade divina. Como o Cristo, ele aceita passivamente o Mal, sem mesmo se interrogar sobre as eventuais motivações da divindade. Se o Cristo, em um momento de sua agonia, deixa escapar o "lamma sabachtani", Paneloux morrerá sem uma só palavra nos lábios.

"Há muito tempo, os cristãos da Abissínia viam na peste um meio eficaz, de origem divina, de se obter a eternidade. Aqueles que não haviam sido atingidos se enrolavam nos lençóis dos pestíferos para terem a certeza da morte. Sem dúvida, este desejo furioso de saúde não é recomendável, pois denota uma deplorável precipitação, bem próxima do orgulho. Não se deve ser mais apressado do que Deus. Tudo o que pretende acelerar a ordem imutável, estabelecida de uma vez por todas, conduz à heresia. Mas este exemplo, pelo menos, traz sua lição. Para nossos espíritos mais clarividentes, faz luzir este brilho delicado de eternidade que jaz no fundo de todo sofrimento. Esta luz ilumina os caminhos crepusculares que conduzem à libertação. Ela manifesta a vontade divina que, sem falhar, transforma o mal em bem".

Submissão total. Não existissem homens como Rieux que, frente à peste, julga ser necessário "fazer o que é necessário", talvez não restasse na mítica Oran de Camus sobrevivente algum para contar sua história. O autor, que vê na doutrina do Cristo o assentimento total, a não-resistência ao Mal, considerava A Peste como seu livro mais anticristão.

Nem mesmo a agonia de uma criança abala a fé do padre:
"– Eu compreendo, murmurou Paneloux, isto é revoltante porque ultrapassa nossas medidas. Mas talvez se deva amar o que não conseguimos entender".

Estas reflexões me ocorrem a propósito do desabamento do templo da igreja Renascer, criada por dois vigaristas, a sedizente bispa Sônia Hernandes e o sedizente apóstolo Estevam Hernandes, hoje cumprindo cadeia nos Estados Unidos, por transportar dólares ilegalmente dentro de uma Bíblia. A bispa é autora de um achado teológico insólito: “Deus é uma coisa quentinha, gente!”

O casal fundou a Igreja Apostólica Renascer em Cristo em 1986. A estréia da nutricionista e dona de butique casada com o ex-gerente de marketing da Xerox no mundo da religião foi modesta: eles montaram um grupo de oração dentro da própria casa. Com o crescimento do grupo, eles transferiram as orações para o piso superior de uma pizzaria. Pouco tempo depois, se mudaram para o prédio da avenida Lins de Vasconcelos, no Cambuci (São Paulo), sede internacional da Renascer. Acusados de cometer os crimes de lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e estelionato, Sônia e Hernandes são donos de uma fortuna estimada hoje em R$ 20 milhões. Templo é dinheiro.

A bispa Sônia, e seu marido, o apóstolo Estevam Hernandes, enviaram, dos Estados Unidos, onde estão em prisão domiciliar, uma nota de pesar pelo desabamento do teto da sede da igreja. "Foi uma grande fatalidade o que ocorreu. Não sabemos o motivo. Mas há de haver um propósito para tal sofrimento", afirma o casal.

Como pode o bom Deus matar nove pessoas e ferir cerca de cem outras que se prestavam a adorá-Lo? “Talvez se deva amar o que não conseguimos entender”, diria Paneloux. Por outro lado, os nove mortos estarão hoje no seio da deidade. Autênticos eram os cristãos da Abissínia, que se enrolavam nos lençóis dos pestíferos para terem a certeza da morte. Felizes são os nove. Os cem feridos são um pobres diabos, que não mereceram encontrar-se com o Senhor.

Certamente deve haver algum propósito para tal sofrimento. Se o tal de Deus existe, deve ser cioso de sua reputação. Vai ver que decidiu punir os panacas que acreditaram em dois vigaristas que pregavam em seu nome.