¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

domingo, fevereiro 08, 2009
 
DEIXEM ELUANA PARTIR


Não tinha nem braços nem pernas. Atirou a cabeça para trás e começou a gritar de medo. Mas apenas começou porque não tinha boca com que gritar. Ficou tão surpreso de não gritar quanto tentou fazê-lo que começou a mexer as mandíbulas como um homem que descobriu algo interessante e quer experimentar. Estava tão seguro de que a idéia de não ter boca era um sonho que se sentia capaz de investigar a coisa calmamente. Tentou mexer as mandíbulas e não tinha mandíbulas. Tentou passar a língua do lado de dentro dos dentes e por sobre o céu da boca como se estivesse buscando uma semente de framboesa. Mas não tinha língua nem dentes. Não tinha céu da boca nem boca. Tentou engolir mas não podia porque não tinha palato e não lhe restavam músculos com que engolir.

Começou a sufocar e a arquejar. Era como se alguém lhe tivesse empurrado um colchão sobre o rosto e o estivesse mantendo ali. Respirava agora forte e depressa mas não estava realmente respirando porque nenhum ar passava pelo nariz. Não tinha nariz. Podia sentir o peito subir e descer mas nenhuma respiração passava pelo lugar onde era o nariz. Experimentou o desejo furioso e aterrorizante de morrer, de se matar.



Nestes dias em que a Igreja romana exibe publicamente sua face horrenda, se encarniçando – junto com Berlusconi – a prolongar a vida de uma menina que vive vida de vegetal há 17 anos, fui correndo até minha biblioteca em busca de um livro que li nos anos 70, Uma arma para Johnny, de Dalton Trumbo. Não o achei, deve ter sido extraviado em alguma de minhas mudanças. Buscando na Internet, tive a sorte de achar o trecho supra, publicado pela Gazeta de Alagoas, edição de hoje. O livro foi publicado em 1939 e o próprio autor o filmou em 1971, quando recebeu o prêmio especial da crítica no Festival de Cannes. Boas notícias para os catadores de obras esgotadas: o livro será relançado pela Relume Dumará, no próximo sábado. O ressurgimento da obra pretende ser um protesto à política belicista de George Bush.

Tanto o livro como o filme são sufocantes. Você entra no cinema e já se sente deprimido nos primeiros minutos. E sai arrasado. Lembro-me que ao sair, ocorreu-me mover os dedos e quase chorei de felicidade ao sentir que podia mover um dedo. O filme é duro, mas não deixa de ser um hino à vida.

Talvez a memória me traia um pouco. O filme abre com um quirófano – ou talvez quarto de hospital, não lembro – onde vemos um vulto sobre uma cama, coberto por um lençol. Ainda não sabemos, mas é o corpo de um soldado – Joe Bonham – que lutou na Primeira Guerra. Ao jogar-se em uma trincheira, uma granada caiu junto. O que restou é o que está sob o lençol. Ironicamente, seu sexo foi preservado. A narrativa é feita através de um monólogo interior.

Johnny acorda. Tenta rememorar seus últimos momentos. Ao tentar mover um braço, descobre que não tem mais braço. Revolta-se. Absurdo cortarem um braço sem sequer consultar o dono do braço. Tenta mover o outro. Também foi cortado. Ele não acredita. Me cortam dois braços sem sequer me perguntar se quero viver sem braços? Tenta mover uma perna. Não tem mais perna. Tenta mover a outra. Também foi cortada. Já nos primeiros minutos, não só Johnny, mas também o espectador, estão com o moral profundamente abalado. Tenta mover as mandíbulas. Não tem mais mandíbulas. Tenta tatear as mandíbulas com a língua. Não tem mais língua. Mais adiante descobrirá que não tem olhos nem ouvidos.

Johnny foi condenado à mais terrível das prisões, a prisão do próprio corpo. E não tem maneira alguma de comunicar-se com o exterior. É apenas um cérebro – vivo e pensante – encarcerado em um tronco. Em meio a seu desespero, Johnny descobre que conhece código Morse. Batendo com a cabeça na cabeceira da cama, tentar enviar uma mensagem: S.O.S, S.O.S, S.O.S. Um médico que ia passando, toma seu gesto como convulsões e lhe administra um calmante. Johnny, que julgara ter encontrado uma fórmula para comunicar-se, se apaga.

Mas não desiste de tentar comunicar-se. Uma enfermeira, compadecida, o masturba. Johnny se desespera, não era isso o que esperava. Algum tempo depois, uma equipe de médicos e militares vai visitá-lo. Obstinadamente, Johnny continua batendo sua cabeça na cabeceira da cama. É quando um militar, assustado, descobre: isso é Morse e este homem está pedindo socorro. Finalmente, a comunicação se estabelece. O militar responde em Morse, batendo com os dedos em sua testa. Johnny pede para morrer. Negativo. Segundo um general presente, o regulamento proíbe tirar a vida de um soldado ferido. Para concluir: a enfermeira, num gesto de generosidade, acaba por desligá-lo. Do fundo do coração, Johnny exulta: obrigado, obrigado.

Obviamente, não estou escrevendo sobre a obra de Trumbo em protesto à política de Bush no Iraque. Se a Relume Dumará o republica por estas razões, eu o evoco por uma outra, essa obstinada vontade do Vaticano e de Berlusconi de não permitir que seja interrompida a alimentação de Eluana Englaro, que há 17 anos vive como um vegetal. Testemunhei de perto, em minha família, essa condição. Minha sogra entrou em coma irreversível. Quando os médicos disseram ser a boa hora para interromper a alimentação, a família não aceitou a sugestão. A coitada viveu quatro anos como um nabo, sem reação alguma a nada, sem poder expressar coisa alguma. Johnny tinha mais recursos: conhecia código Morse e estava consciente.

O pior destas circunstâncias é que a pessoa chega a um estado em que não tem condições nem mesmo de pedir que a desliguem. Eluana não manifestou vontade de suicidar-se, dizem alguns sádicos que adoram assistir ao sofrimento alheio. Nem poderia manifestar. Quem a manifesta é sua família, com todo direito e por amor. Terá o Estado ou Igreja o direito de impedir que morra quem já não mais vive? Quando João Paulo II agonizava, eu – que não tenho simpatia alguma por papas – fiquei condoído e considerei que o melhor a ser feito era deixá-lo partir. Fui chamado de nazista para cima. Mais tarde, um cardeal confessou que João Paulo chegou a pedir para morrer. “Deixem-me ir ao encontro do Pai” – disse o papa.

É sadismo, desumanidade absoluta, tentar preservar viva pessoa que já não mais vive. Não conseguimos sequer saber se essa pessoa está sofrendo, pois nem o sofrimento consegue expressar. Todo ser humano tem o direito de decidir quando quer partir. Particularmente quando se encontra nessas condições terminais. Quando manifestei meu contentamento com a morte de Mariana Bridi, a modelo que perdeu pés e mãos, não faltou quem me chamasse de nazista, afinal todo defensor da eutanásia só pode ser nazista.

Isso sem falar no sofrimento da família, que tem de conviver por anos e anos com aquele vegetal que um dia foi sua filha. Sem falar também em uma outra questão bem menos metafísica, mas nem por isso menos importante. Uma pessoa nessas condições, dilapida rapidamente todas as posses de uma família. Para início de conversa, precisa da assistência de pelo menos três enfermeiras. Mais os gastos de manutenção do semi-cadáver. A pessoa não está mais viva e a família vai afundando junto com aquele ser em condição vegetal.

Estes senhores contrários à eutanásia, são em geral devotos daquele Deus que deixou o Filho morrer em condições cruentas. Faz sentido.