¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, fevereiro 23, 2009
 
O ANTROPOCENTRISMO
DO DEUS DOS CRISTÃOS



Há quem ache que me preocupo demais com religiões e, pior ainda, há quem ache que ando à procura de uma fé. Nada disso. O fato é que o tal de Deus é de fato onipresente. Para onde quer que a gente se vire, lá está ele. É o personagem mais universal da literatura. Um mendigo certamente não sabe quem foram o Quixote ou Pantagruel ou Raskolnikov. Mas Deus, ele o conhece desde sempre. Não por acaso, a todo momento o invocam: “Pelo amor de Deus...” Todo escritor, sem dúvida alguma, deve invejar os hagiógrafos. Nunca alguém, nem mesmo um gênio, criou personagem tão popular como aquele criado por astutos sacerdotes de milênios atrás.

Em outras palavras, é o que afirma Steven Weinberg, físico teórico e prêmio Nobel, em reportagem do El País de hoje: “Há quem tenha conceito tão amplo de Deus que não há forma de evitar que o acabe encontrando em qualquer parte. Se queres dizer que Deus é energia, podes achá-lo em um monte de carvão”.

É o que acontece em nossos dias. Reencontrou-me, outro dia, uma antiga profissional da noite, que eu não via há uns bons trinta anos. A última vez que a vi foi em um de seus aniversários, em Porto Alegre. Terá sido em abril ou maio de 77. Ela estava linda, toda em patchwork. Levei-lhe um ramalhete de flores, ela se desatou em lágrimas. Também estava lá todo o bordel e boa parte de minhas diletas. De repente, surgiu um fotógrafo. Os machos presentes, salvo um ou dois, começaram a perguntar “que horas são?” e foram dando no pé. Eu fiquei. Ela desafiou-me: tiramos uma foto cortando o bolo? Claro, por que não? Mais uma foto abraçadinho comigo? Vamos lá. Me dá um beijo? Dou.

Eu tinha outros compromissos naquela noite, mas não houve como sair de lá. Ela não permitiu. Chorou comigo quase toda a noite, nunca se sentira tão respeitada, o jornalista conhecido aceitando ser fotografado com uma mulher da noite. Ora, aquilo só me honrava. Até hoje guardo com carinho aquelas fotos. Um grupo de clientes lhe financiava um curso de Direito. Formou-se em Direito, advogou, já fez duas viagens à Europa e uma aos Estados Unidos, viagens daquelas tipo conhecer 15 cidades em dez dias, é verdade. Mas, enfim, viagem. Melhor que nada.

Mas não era disto que pretendia falar. A moça, de repente, tornou-se crente. Daquelas fanáticas. Que vê Deus até atrás da porta. Saiu da noite, entrou na universidade e mergulhou naquela outra noite, a do obscurantismo. Depois de nosso reencontro, tenho recebido longas pregações via telefônica. Pergunto a ela: mas como é esse deus do qual falas? Ela não sabe definir, apenas o sente. De cambulhada, acredita também em espiritismo, psicanálise, testemunhas de Jeová, feng shui, florais de Bach, crença que passar por perto ela traça. Vê deus em toda a parte e cerca o jogo por todos os lados, aposta uma fichinha em cada número. Quer dizer, impossível argumentar com a moça.

Por outro lado, Deus só tem qualidades boas. Quando lhe conto sobre os massacres perpetrados ou estimulados por Jeová, ela não acredita. De onde tiraste isso? Da Bíblia, oras. Ah, mas então ele deve ter tido suas razões. Confesso que preferia aquela moça em cujo aniversário estive, há uns bons trinta anos. Até hoje não entendo como um universitário pode acreditar em potocas metafísicas. Isto significa que a universidade, no fundo, não serve para grande coisa. Enfim, se ela se sente bem assim, louvado seja seu Deus, seja lá qual for.

Outro dia, sem saber como definir seu deus, tascou: Deus é energia. Voilà o personagem do qual Steven Weinberg fala. E eles são muito mais encontradiços do que você possa imaginar. Nos espantamos com o fato de que no Oriente existam milhões de deuses. Em verdade, no Ocidente também. Conheço um professor universitário que criou um deus para si e a ele reza todas as noites. Aposto que é deus-cúmplice, camaradão, sempre disposto a avalizar qualquer gesto do professor.

È o deus-à-la-carte, como já comentei em crônicas passadas. Cada um constrói um deus para si próprio, à sua imagem e semelhança. Segundo o repórter, Javier Sampedro, a investigação recente em psicologia cognitiva, neurobiologia e antropologia revelou que a maioria dos crentes, seja qual for seu culto, têm interiorizado um modelo extremadamente antropocêntrico de Deus. Ora, não me parece necessário recorrer a ciências (?) exóticas e contemporâneas para chegarmos a esta brilhante conclusão.

Basta ler a Bíblia, livro velho de dois milênios. Jeová é, sem tirar nem pôr, um retrato das piores qualidades do ser humano. Nutre ódio por quem não é do povo eleito, massacra tribos inteiras, exerce a vingança, protege os seus, perdoa os crimes dos patriarcas que o adoram, é vaidoso e ciumento. “Eu sou um Deus ciumento”, diz no Êxodo. “Eu sou Jeová, teu Deus”, proclama ao final de cada palavra que dirige aos seus. Exige ser adorado. Por que precisaria um deus exigir adoração? Mais ainda: porque precisa de adoração?

O modelito do deus cristão, pelo menos, é extremamente antropocêntrico. Mas este antropocentrismo não se refere ao comum dos mortais, que só desejam viver bem e morrer em paz. Jeová quer mais. O modelo, em verdade, parece ter sido inspirado – ou talvez ter inspirado – homens ilustres como Hitler, Stalin, Mao, Pol Pot, Ceaucescu, Envers Hodja.