¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, fevereiro 18, 2009
 
PARADOXO DO PÉRIGORD
E OUTROS PARADOXOS



Há cerca de um ano, comentei algo sobre o paradoxo do Périgord. Como ninguém mais deve lembrar do que seja, volto ao assunto. Lá pelos 80, quando viajaria para a França, recomendou-me um médico de Florianópolis: cuidado com o vinho. Seja moderado. E muito cuidado com os queijos e foie gras. Ora, considero que prescrições médicas devem ser levadas a sério. Era no mês de meu aniversário. Amigos me receberam com muito vinho, champanhe, queijos e foie gras. Eu, beliscando como um tico-tico. Bebendo pouco e comendo menos ainda.

Vai daí que, ao tomar o avião de volta, comprei um Nouvel Observateur. A reportagem de capa era sobre o “paradoxe du Périgord”, algo que até hoje perturba a medicina politicamente correta. Por este paradoxo entende-se o estranho fenômeno de o Périgord ser uma região de alto consumo de patês, queijos e vinhos e, no entanto, seus habitantes gozarem de excelente saúde cardíaca e vascular. Um médico declarava, na reportagem, que inclusive um pouco de boudin no leite das crianças era muito saudável. Boudin é a versão francesa da nossa morcilha. Mais suave e um de meus pratos prediletos. Me senti roubado.

Ao voltar a Santa Catarina, busquei meu médico. De Nouvel em punho. Doutor, o senhor ouviu falar disto, o paradoxo do Périgord? Não, não havia ouvido falar. Então leia esta reportagem. Não leio em francês, disse-me. Tudo bem – respondi – eu traduzo. E traduzi.

Ele fez marcha à ré. Bom... meia garrafa de vinho por dia é sempre bom para o coração. Ou duas doses de uísque. Entende-se que o boudin seja saudável às crianças, contém ferro. Mas nós, médicos, não podemos admitir isto. Seria estimular o alcoolismo.

Não acho. Sempre discordei do conceito médico de alcoolismo. Com o tempo, descobri que médicos formados nos Estados Unidos são sempre mais intolerantes em relação ao álcool que os formados na Europa. Coisa de puritanos. Na Espanha, França, Itália ou Portugal, o vinho faz parte de qualquer refeição. Antes do final do século passado, uma médica me proibiu qualquer gota de álcool. Consulente disciplinado, passei dois anos sem beber. Minha vida se tornou um inferno. Meus amigos bebiam e eu só tomava cerveja sem álcool. Em alguns bares, fui apelidado de Kronenbier. Meus amigos entravam em uma outra fase e eu restava sóbrio. Horror. Troquei de médica. De início, já fui claro: Doutora, eu estou trocando de médica porque a anterior me proibiu o álcool. Estou buscando uma que o libere.

Ela topou e eu voltei ao mundo dos vivos. Ainda no ano passado, li que o vinho tinto pode ser muito mais potente do que se imaginava no prolongamento da vida humana, segundo cientistas que pesquisam drogas para a longevidade. O estudo se baseava em doses dadas a camundongos de resveratrol, um ingrediente de alguns vinhos tintos. Alguns cientistas já estariam tomando resveratrol em forma de cápsula, mas outros acreditam que é cedo demais para tomar a droga, especialmente usando vinho como sua fonte, até que haja melhores dados sobre sua segurança e eficácia.

Isso foi no ano passado. Neste ano da graça – ou da desgraça – houve um revertério na opinião dos cientistas. Em despacho da France Press, leio:

ESTUDO FRANCÊS PROÍBE TAÇA DE VINHO DIÁRIA

Segundo um estudo, publicado ontem pelo Instituto Nacional Francês do Câncer (INCA), na relação entre o que comemos e bebemos e as possibilidades de vir a ter um câncer, o álcool é o primeiro a sentar-se nos banco dos réus. Na referência álcool-câncer não existiria "dose protetora". Com seus efeitos invisíveis, "as pequenas e repetidas doses são as mais nocivas", destaca o presidente do INCA, Dominique Maraninchi.

Para Paule Martel, diretora de pesquisa do Instituto de Investigação Agrônoma (INRA), "é desaconselhado todo o consumo diário de vinho". Me soa insólito ouvir isto de um francês. Segundo o estudo, "o consumo de bebidas alcoólicas está associado a um aumento do risco de se sofrer câncer de boca, faringe, laringe, esôfago, cólon e reto, mama e fígado". O risco aumenta 9%, no caso de câncer de cólon e reto, se for consumida uma taça ao dia. E esse risco chega inclusive a 168% para os cânceres de boca, faringe e laringe.

Isso se deveria, sobretudo, à transformação do etanol em acetaldeído; além disso, o etanol aumenta a permeabilidade da mucosa a elementos cancerígenos como o tabaco. O consumo crônico de álcool produz, também, uma deficiência de ácido fólico, algo que favorece o câncer colorretal. O estudo vai mais longe. Na França, o consumo de álcool é, atrás do tabaco, a segunda causa evitável de morte por câncer (10,8% dos falecimentos por patologias cancerígenas entre homens e 4,5% entre mulheres).

Me lembrei de um personagem que conheci há cinco anos. Tinha 93 anos e bebia, religiosamente, uma garrafa de vinho por dia. Chama-se Étilo e fazia jus ao nome. Pena que morreu ano passado. Aos 97 anos. Gostaria de levar “seu” Étilo até o INCA, para ver o que diriam os pesquisadores sobre sua longevidade. Ora, direis, a exceção não justifica a regra. De acordo. Mas proibir uma tacinha diária do sangue das uvas, como diz a Bíblia, me parece um exagero que aos céus clama desmentido.

Se fosse só o vinho... Mas, sempre segundo o famigerado estudo, o consumo de carne vermelha e frios pode produzir câncer de cólon e reto. Mas não há razões, também, para alarmismos: o limiar para que esses produtos comecem a ser perigosos é 500 gramas de carne vermelha por semana. Ora, cá chez nous, o peso médio de um filé é de 250 gramas. Os cientistas nos permitem então apenas dois filés por semana. De preferência sem sal, pois o sal parece estar relacionado ao câncer de estômago. Os alimentos à base de betacaroteno – que até ontem há pouco tempo salvavam de câncer e doenças do coração – agora aumentam significativamente o risco de câncer de pulmão nos fumantes.

Terá o informe dos cientistas força suficiente para coibir, já não digo a taça diária de vinho que os franceses geralmente tomam durante o almoço, mas o pichet, que pode ser de meio litro ou de litro? Isso sem falar no que bebem espanhóis, portugueses e italianos. Anni e bicchieri di vino non si contano mai – diz-se na Itália. Onde fica a sabedoria popular? E o paradoxo do Périgord? Seria uma perversa conspiração de médicos para defender a indústria vinícola francesa? O que antes era saudável, de repente, vira letal?

Isto me lembra um gastroenterologista que consultei em Curitiba. Segundo ele, a dose diária permissível de cerveja é meio copo. Ora, Dr. – objetei – não existe meio copo de cerveja. Outro dia, trabalhava eu aqui em casa com a televisão ligada. Subitamente ouço a expressão “meio copo de cerveja”. Só pode ser aquele cretino de Curitiba, pensei. Fui até a televisão. Era.

Sem ser cientista, observo o mundo que me cerca. Ora, se uma taça de vinho por dia é fator cancerígeno, França, Alemanha e península ibérica já teriam sido devastadas pelo câncer. Em meus dias de Espanha, constava de todo menu – e ainda hoje consta – meia garrafa de vinho. O garçom sempre me trazia garrafa inteira. Eu reclamava: mas não é meia garrafa? Invariavelmente, ouvia como resposta: beba lo que quiera, caballero!

Terá a Europa, durante séculos, mantido em seu passadio um elemento letal, o vinho? Que faziam os cientistas em décadas passadas, que só agora, em 2009, chegam a tal descoberta? Será talvez fruto da islamização da Europa? Para um muçulmano, deve ser reconfortante ouvir que vinho dá câncer. Isto está me parecendo um pouco à trajetória do ovo. Durante décadas, foi visto como um vilão absoluto. Ainda hoje, comentava Ruy Castro na Folha de São Paulo:

“Durante quase toda a segunda metade do século 20, médicos e cientistas dedicaram-se a acusar o ovo dos piores crimes contra o coração e a responsabilizá-lo pela elevação dos níveis de colesterol a placares de basquete americano. Quem fosse cardíaco, não chegasse perto; quem não fosse, idem, para prevenir. Às galinhas só restava submeter-se ao holocausto reservado à sua espécie e ao opróbrio para o seu produto.

“Pois, desde algum tempo, depois de pesquisas mais sérias e profundas, esses mesmos médicos e cientistas começaram a emitir sinais de que talvez tivessem sido injustos com o ovo. E, na semana passada, saiu o relatório definitivo da Universidade de Surrey, na Inglaterra: o ovo não faz o menor mal à saúde - ao contrário, é riquíssimo em nutrientes - e pode ser comido na legalidade e em qualquer quantidade. Só faltam dar-lhe a medalha de alimento do ano”.

Os cientistas do INCA que me desculpem. Vou esperar pelos próximos estudos. Sem vinho, a vida não tem muita graça. Voltando ao estudo, parece só ter graça o que não tem sabor. O informe destaca as excelências das frutas e dos legumes, ricos em antioxidantes e vitamina B9 (ácido fólico), com um consumo diário recomendado de, no mínimo, 400 gramas. Sei lá! Não acredito em teorias conspiratórias, mas isto está me parecendo lobby da indústria hortifrutigranjeira.

Conceber a Espanha sem a media botellita de cada almoço? Sem os cochinillos e lechales? É o mesmo que imaginar uma Espanha sem flamenco nem touradas. Ver a França sem direito a seu demi-pichet rouge? É Paris sem a torre Eiffel. Imaginar a Itália senza il vino? Seria como ir a Roma e não ver o Bento.

Desde há muito não acredito em Deus. Mais uma dessas e deixarei de acreditar na ciência. Decidam-se, senhores cientistas. Ou me tornarei ateu em dose dupla.