¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, março 26, 2009
 
AFRODESCENDENTADA DIVIDIDA


Comentei ontem a questão das cotas. E reafirmei meu respeito aos negros que se recusam a entrar na universidade pela porta dos fundos. São pessoas que geralmente não têm espaço na imprensa, pois remam contra a correnteza. Verdade que, nos últimos anos, jornalistas e escritores já começaram a perceber que o sistema de cotas só serve para fomentar racismo. Mas constituem uma minoria impotente. Quanto mais que gritam e mostram o óbvio, mais o sistema de cotas avança no mundo acadêmico e já ameaça o mercado de trabalho.

Assim, foi com surpresa que li ontem, no Estadão, em página nobre, artigo do advogado José Roberto F. Militão, membro da Comissão de Assuntos Antidiscriminatórios Conad-OAB/SP e ex-secretário geral do Conselho da Comunidade Negra do governo do Estado de São Paulo, títulos que à primeira vista sugerem um defensor das cotas. Militão é negro mas não caiu nesta armadilha do racismo negro.

“Estamos trilhando a contramão da história" – escreve o advogado. “Sem pensar nas gerações futuras, leis e políticas públicas estão racializando o Brasil e violando os artigos 5.º e 19.º da Constituição, segregando direitos da cidadania. Não é disso que precisamos. Queremos que o Estado nos assegure o direito à igualdade de tratamento e de oportunidades, o que não equivale a privilégios raciais. (...) No caso da escassez de vagas nas universidades, não é razoável que, sem qualquer novo investimento público, sob alegação de falacioso direito racial, venha o Estado retirar vagas de brancos pobres para entregá-las a pretos também pobres, oriundos de mesma escola pública e mesmo ambiente social. Basta, portanto, a reserva de 50% das vagas por meio de critérios sociais e de origem na escola pública, suficientes para ampliar oportunidades e igualar a disputa entre os pobres. Com isso também se reduz o privilégio dos ricos”.

Até aí assino embaixo. É o que venho afirmando há mais de década. O leitor, se tiver paciência, pode conferir nos jornais: depois da queda do Muro de Berlim, aumentaram consideravelmente nos jornais as alusões a raça e racismo. As motivações não exigem grande esforço intelectual para serem entendidas. São sempre as esquerdas, mais precisamente as viúvas do Kremlin, que empunham a bandeira das cotas. Tornou-se ridículo falar em lutas de classes. A antiga nomenclatura, a oposição entre proletariado e burguesia, tornou-se obsoleta. Tão absurda como a luta de classes. Desde há muito os chamados proletários querem fugir de sua classe e incorporar-se a dos então chamados burgueses. Tanto que – exceto alguma múmia perdida nos trópicos, como Niemeyer – já não ousam empregar este vocabulário.

Ora, sem luta as esquerdas não sabem como respirar. Morta a luta de classes, instaurou-se a luta racial. Militão não caiu neste conto das viúvas. Mas não escapou do conto da Unesco: “A Constituição federal repudia a classificação racial e está conforme as convenções internacionais que, desde a 2.ª Guerra Mundial e desde a Declaração Contra o Racismo da Unesco, de 1950, têm reiterado o consenso de que a luta contra o racismo exige esforços estatais para a destruição da crença em raças. Isso pressupõe a necessária abstenção do Estado para não legitimar essa crença racial”.

Ora, se a Constituição repudia a classificação racial, todos os sensos do IBGE são inconstitucionais, já que definem claramente as raças predominantes do Brasil: branca, mulata (no caso, chamados de pardos), pretos e índios. Ora, raça é um conceito científico e não político. Quando os Estados Unidos não aceitam que um turista ou migrante branco latino-americano se defina como branco no pedido de visto, usa-se um conceito político e não biológico. Esta política oficial americana é um dos últimos resquícios das infamantes leis Jim Crow, declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte americana em 1954. No entanto, desde 1880, constituíram a base legal da discriminação contra negros nos Estados do Sul, proibindo até mesmo um estudante passar um livro escolar a outro que não fosse da mesma raça.

Militão demonstra bom senso ao denunciar a injustiça flagrande das cotas. Mas pretende que o Estado destrua a crença em raças. Em bom português: quer que o Estado elimine o conceito de raça. A virgindade de Maria é uma questão de crença. Mas a existência de raças não. Há até algo de religioso nesta pretensão. É como se após os animais se diferenciarem a partir de raças, alguma mão divina interrompeu a evolução e decretou: depois do Homo Sapiens, não se fala mais em raça. Ora, sejamos coerentes: se não se fala mais em raças humanas, tampouco se fale em raças animais. Não existem mais dálmatas, buldogs, bassets, beagles, dobermanns, filas, chihuahuas, chowchows, cockers, malteses, pequineses, pitbulls, poodles, yorkshires, São Bernardos, rottweilers. Mas apenas cães. Urgem esforços estatais para destruir as infames denominações de raças árabe, crioula, Holsteiner, mangalarga, puros sangues ingleses, espanhóis e lusitanos, lipizzaners, appaloosa e quartos de milha, percherons, paint horses, campolinas, favacho, JB, Bela Cruz. O que existe são simplesmente cavalos. Abaixo o racismo no mundo animal!

Mas os negros que abominam Militão por sua recusa em aceitar a política de cotas são os mesmos que também o abominarão por sua defesa da abolição do conceito de raça. A afrodescendentada está dividida. Se antes das cotas, os apparatchiks dos movimentos negros defendiam esta bandeira, agora é outro o trote da mula. Ser negro tem vantagens. Então é claro que raça tem de existir.

Não bastasse assumir a ditatorial proposição da Unesco, o advogado encerra seu artigo com chave de ouro, citando Malcolm X: “Com sabedoria, nossas avós ensinaram: somos homens e mulheres "de cor". Elas deduziam que a cor de pretos e pardos é uma característica biológica natural, diferente do conceito de "raça negra" - uma construção social para oprimir, violar a dignidade dos humanos de cor e sonegar a inteira humanidade, conforme dizia o líder afro-americano Malcom (sic!) X”.

Ora, quem foi Malcolm X? Um ativista negro americano e racista, que pregava a violência e se converteu ao Islã. Este sim acreditava em raças, tanto que defendia a separação total entre brancos e negros. Como Aiatolavo, Militão é outro que ouviu o galo cantar mas não sabe onde.

No fundo, o velho e humano desejo de poder e privilégios. Quanto mais for intensificada a luta racial no Brasil, mais vibrarão as viúvas. A ditadura de uma classe foi sonho de uma noite de verão. Quem sabe uma ditadura racial? Talvez não ditadura, mas a boa e antiga supremacia racial, agora com sinal invertido?

A esperança nunca morre.