¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, março 30, 2009
 
CRISE UNE FAMÍLIA
E RESSUSCITA AMOR



Essa tal de crise da qual tanto se fala, pelo jeito ainda não deu as caras em São Paulo. Ou pelo menos na geografia urbana que uso. Aos fins de semana, se você vai a churrascarias imensas como El Tranvia, Pobre Juan ou Vento Haragano, se for na hora do almoço, encontrará no mínimo meia hora de espera. Veterano, chego sempre um pouco mais tarde. Nos bons restaurantes da Paulicéia – e não estou falando daqueles destinados a pessoas jurídicas, como o Fasano ou Massimo, onde a clientela em geral paga com o dinheiro do contribuinte – você vai ver todos os dias uma turba alegre, conversando, namorando, bebendo e comendo bem. Vilaboim, Vila Madalena, Pinheiros, Jardins, a rua Augusta, hoje revitalizada, continuam fervendo de gentes em busca de boa comida ou lazer noturno.

Verdade que há um certo índice de desemprego entre os proles, como diria Orwell. Mas não vi nem tive notícias de nenhum restaurante fechando ou baixando os preços. Pelo contrário, novas casas estão abrindo todas as semanas. Em Paris ou Madri, você come melhor e mais barato que nesta capital que se gaba de sua gastronomia. Inclusive me consta que hoje sai barato visitar a Islândia, o país mais caro da Europa. Realistas, hoteleiros e restauradores preferiram diminuir seus lucros a perder seus investimentos.

No Primeiro Mundo, a crise corre solta. Já nem falo das seis centenas de milhares de empregos que desapareceram no início do ano nos Estados Unidos. Nem no índice Down Jones, que caiu mais de 2.200 pontos desde setembro do ano passado. Segundo o New York Times, a crise está interferindo até nas relações pessoais. Curiosamente, interferindo de forma positiva. Segundo o jornal, as agências de namoro especializadas em encontrar o parceiro ideal, tanto as online quanto as tradicionais, estão anunciando que o interesse pela paquera cresceu bastante. Sites de relacionamento tiveram grandes lucros nos últimos meses, e firmas offline como a Amy Laurent International, um serviço de busca de parceiros românticos com escritórios em Nova York, Los Angeles e Miami, diz que os negócios aumentaram 40% entre os clientes do sexo feminino nos últimos quatro meses.

Os motivos seriam óbvios. Pessoas desempregadas e subempregadas contam com mais tempo para surfar na Web, e os serviços de namoro online são uma forma relativamente barata de conhecer pessoas. Os programas de encontro organizados são mais baratos do que o financiamento de uma série de jantares potencialmente inúteis com pessoas desconhecidas. E pessoas solteiras – o amor é lindo! – estão buscando o conforto de um relacionamento durante períodos difíceis. Um site que registrava cerca de 80 mil encontros virtuais diários em outubro, aumentou 60%, para uma média de 130 mil encontros. Em dias bicudos, um ombro amigo para chorar as desgraças é sempre bem-vindo.

Se na Paulicéia o clima está mais para último baile da Ilha da Fiscal, nos States as pessoas estão preferindo relações virtuais. Segundo Markus Frind, diretor-executivo de um site gratuito, "durante as recessões as pessoas ficam mais em casa, elas não desejam pagar contas e ir para bares. Elas conectam-se à Internet e conhecem-se no ciberespaço”.

Quem ganha é o tal de amor. Segundo sites de relacionamento na Web, “à medida que os mercados de ações despencam em todo o mundo, as pessoas optam por tentar a sorte no amor online, como forma de esquecer os problemas financeiros e de economizar”. Para a psicóloga nova-iorquina Paulette Kouffman Sherman, se a recessão resultar em um desejo por relacionamento que não se baseie nas finanças pessoais do indivíduo, isso poderá representar de fato um boom para o amor. "Um indivíduo possui muitos aspectos. Focalizar-se apenas em emprego ou dinheiro é algo meio doentio". Pelo jeito, a psicóloga descobriu a América.

O pensador cristão Gabriel Marcel, que passou todo o século passado clamando no deserto, filosofando sobre a supremacia do ser em relação ao ter, deve hoje estar batendo palmas em sua tumba. Nada melhor que uma boa crise para que os consumidores contumazes americanos começassem a pensar nos valores do ser. Segundo Annie Edgerton, uma atriz que mora em Manhattan, “tudo isso fez com que a pressão no sentido de impressionar os outros com dinheiro diminuísse muito. Agora dá para conhecer uma pessoa por aquilo que ela de fato é, e não pelo seu emprego, já que ela pode não estar mais empregada".

Da Espanha, recebo notícias de que divorciar-se virou luxo, recurso apenas ao alcance de quem pode enfrentar uma separação. Divórcio significa duas casas em vez de uma, dois mobiliários em vez de um, despesas que não mais são assumidas em conjunto, mas agora em separado. Os casais, hoje, pensam duas vezes antes de separar-se. Mas, como escreveu o Velho, a humanidade não formula jamais senão problemas que pode resolver, “porque, se olharmos mais de perto, vemos sempre que o próprio problema só surge onde as condições materiais para resolvê-lo existem ou, pelo menos, estão em vias de aparecer”. Sobrou até para um revival de Marx: muitos dos casais que se separam, estão preferindo continuar morando na mesma casa.

Segundo o El País, “a opção por viver só que prolifera em tempos de bonança vive horas sombrias na Espanha. O desemprego e as dificuldades lhe tiraram todo o encanto. Os sozinhos (ou ímpares, como são chamados na Espanha) não sofrem a crise mais que os outros. Mas a sofrem. O número dos que procuram companheiros para dividir apartamento, segundo alguns portais da internet, quase duplicou. O crescimento de domicílios unipessoais, depois de um aumento trepidante, está sendo freado. E as separações, essa fábrica de singles que trabalhou a pleno vapor com o divórcio expresso, agora baixou o ritmo, devido ao fim desse efeito e também à crise econômica”.

Patricia F., catalã entrevistada pelo jornal, diplomada em filosofia e sociologia, é um exemplo típico da crise. Ganhava três 3 mil euros brutos por mês e podia morar sozinha em um apartamento alugado em Barcelona. Teve de baixar o ritmo de consumo. "Porque com o desemprego não tenho nem para a metade dos meus gastos. Cortei tudo: saía para jantar fora no mínimo duas vezes por semana e agora só saio se for a uma festa em casa de amigos. Não sou de comprar muita roupa, mas quando gostava de algo não precisava pensar. Em momentos assim você trabalha para si mesma, vive como lhe apetece, mas agora não".

Os setores de hotelaria e restauração acusam o golpe. Para José Luis Guerra, presidente da Federação Espanhola de Hotelaria, "não se pode distinguir entre todos esses solteiros e o público em geral, mas a queda foi generalizada. Este ano o gasto está caindo entre 9% e 10% ao mês". Não diminuem as visitas aos restaurantes, mas sim o gasto: de dois pratos se passa a um para a dividir e da sobremesa ao café, diretamente.

Uma das soluções é voltar ao ninho paterno. "Isso é algo que ocorre nas recessões, costuma servir para a coesão familiar. Porque no final, em momentos assim, é a família que ajuda”, diz José Luiz Nueno, um outro entrevistado. Quem deve estar vibrando com a crise é Sua Santidade Bento XVI e todos os papistas que há horas reclamam da dissolução familiar e de costumes.

O paradoxal nesta crise é que o Primeiro Mundo está caindo na real, como se diz, e baixando o nível de consumo. Desconheço a situação no Brasil todo. Mas nesta cidade em que vivo, o clima está mais para “bebei e embriagai-vos, caríssimos, pois o reino de Deus está próximo”. Quanto mais se fala em crise, mais os paulistanos fazem festa.

A tal de crise parece estar comendo pelas bordas. Nestes dias em que, santé oblige, virei abstêmio, tenho consumido não poucas latinhas daquelas abomináveis cervejas sem álcool, Kronenbier e Líber. Já ia jogando as latas ao lixo, quando Cristina, minha assessora de assuntos domésticos, me interrompeu. “Não faça isso, professor, essas latinhas eu levo pra casa”.

Fiquei preocupado. Estaria pagando tão pouco a ponto de ela precisar recolher latinhas? Não era bem isso. Ela levava para o filho. Que as vendia para comprar videogames. Setenta latinhas dão um quilo. Que era vendido por três reais. Com a crise, estão pagando só um real por quilo. O moleque está então capitalizando as latinhas, à espera de dias melhores.

Estranho país, este nosso. Quem tiver notícias da crise, que mas envie. Daqui de São Paulo, não consigo vê-la.