¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, março 19, 2009
 
DIAS DE BROWNING


A síndrome de Down está virando gênero literário, escrevi outro dia. Pelo jeito, vai virar também filão cinematográfico. Estava previsto ser transmitido nesta quinta-feira, na Grã-Bretanha, pelo canal 3 da BBC, um documentário sobre Otto Baxter, 21 anos, portador da síndrome. Sua mãe, Lucy Baxter, está promovendo uma campanha para que Otto consiga ter todas as experiências que outros jovens de sua idade têm, inclusive sexo. Não vai ser fácil.

Raras vezes estive perto de um portador da síndrome. Nestas raras vezes, os vi como seres patéticos, comoventes, extremamente afetivos. Ou quem sabe faltos de afeto, que é a outra face da moeda. Em meu bairro, eles abundam. Quando os vejo na rua, inevitavelmente me salta a exclamação: e ainda há quem acredite em Deus! Imagino que seja um carga pesada para um pai e uma mãe descobrir o mal em um filho que nasce. Merecem nosso afeto? Muito mais que qualquer outro. Daí a encontrar pessoa normal que os aceite sexualmente vai uma longa distância.

A mãe de Otto está ajudando o filho a espalhar cartazes procurando companhia, e abriu uma página na internet para que o filho possa fazer contatos em busca de um relacionamento sexual. Ora, mesmo entre pessoas normais, não é normal espalhar cartazes buscando companhia. Não é assim que se faz e a moça devia ter consciência disto. Quanto a contatos na Internet, poderá conseguir até mesmo sexo virtual. Já é algo. Sexo de fato, jamais. Todo ser humano, mesmo os portadores de Down, deveria ter consciência de suas limitações. Quando não a têm, é normal que sofram mais do que já sofrem. Seria como pedir para um homem desprovido de pernas a mesma vida dos que têm duas. Há males irremediáveis no mundo e a melhor filosofia é aceitá-los com todas suas seqüelas. Ou partir. Também é uma hipótese.

A mãe de Otto, pelo jeito, quer os holofotes da mídia. Mas os holofotes não lhe trarão parceira alguma para o filho. Esta é uma das nobres funções da prostituição, proporcionar refrigério aos desvalidos. Lucy já pensou no assunto. É com certo tom de ameaça que anuncia estar disposta a pagar uma prostituta para que o filho possa experimentar sua primeira relação sexual. "Discutimos se ele deveria ir a Amsterdã (onde a prostituição é legalizada). Eu absolutamente consideraria essa possibilidade", diz. Se as desumanas jovens britânicas não aceitarem o filho como namorado, a mãe apelará ao horrível recurso do sexo venal.

Deveria ter considerado a idéia há muito tempo, em vez de nutrir no filho falsas esperanças, que só tornarão mais amarga sua vida. Não seria difícil encontrar uma profissional sensível que tratasse do Otto discretamente, longe da mídia. Mas Lucy Baxter queria que seu filho levasse uma vida comum, "que ele fizesse as mesmas coisas que qualquer outra pessoa, por isso fiz questão que ele fosse para uma escola comum", disse ela em entrevista à BBC. Ora, Otto não é comum. É incomum. É claro que estaria melhor servido em uma escola especial. A mãe insiste: "Tive trabalho com as autoridades, que queriam que ele fosse a uma escola especial, mas acredito que ele tem direito a ter as mesmas oportunidades que qualquer outra pessoa".

Acontece que não tem. Nem pode ter. Ter as mesmas oportunidades seria poder ser médico, professor, político e mesmo – por que não? – deputado ou primeiro-ministro. Claro que isto não é dado a um Down. O coitado do Otto já está até acreditando na hipótese: "Eu realmente quero. Estou numa missão para encontrar uma namorada. O motivo é que eu quero ter sexo. Estou procurando namoradas em todo lugar".

Mais realista seria ir a Amsterdã. Se bem que na Grã-Bretanha não faltarão profissionais que realizem seu sonho.

A mídia parece ter exaurido o exibicionismo erótico e está apelando a um outro tipo de exibicionismo, o do sofrimento alheio. Há pessoas exibindo a própria morte nas telas. Aconteceu também na Grã-Bretanha. Em fevereiro passado, Jade Goody, uma ex-participante do Big Brother britânico – em país culto também tem baixaria – acometida de câncer terminal na coluna cervical, já calva em função da quimioterapia, casou-se em frente às câmeras. O evento foi oferecido à emissora que pagasse mais pela exibição.

O objetivo de Goody seria nobre, destinar o dinheiro à educação de seus filhos. Mas não se pode deixar de ver um mórbido exibicionismo no espetáculo. Goody quer agora morrer ao vivo, com perdão pelo paradoxo. Se antes o grande público se satisfazia com pornografia – que, bem ou mal, é uma celebração da vida – temos agora voyeurs para um outro tipo de shows, o show da morte. Que deve ocorrer nas próximas semanas. Cultores da morte, estejam a postos ante suas TVs.

Tudo isto me lembra um dos filmes mais marcantes que já vi em meus dias de Estocolmo: Freaks, do cineasta americano Tod Browning. Talvez mais sinistro que Uma arma para Johnny, de Dalton Trumbo. O filme é de 1935 e só poderia ser realizado nessa época, quando as pessoas disformes eram aproveitadas para exibição em circos. E é em um circo que transcorre a ação do filme. Assistimos a um desfile de monstros que vivem harmoniosamente entre si. Um humor sinistro percorre o filme o tempo todo. Há o homem-tronco, que não tem pés nem braços, “caminha” com movimentos peristálticos da barriga e acende um cigarro com a boca. Uma mulher sem braços que toma vinho segurando a taça com o pé. O mais patético é talvez um par de siamesas, unidas pelos quadris. Ocorre que uma delas casa e a outra – como só poderia ser – tem de acompanhá-la em seus enlevos com o marido. Mais trágico ainda: uma é alcoólatra. Quando bebe, a outra também se embriaga.

Na época, Browning não agradou. Como o público não estava preparado para tal choque, o cineasta recebeu críticas negativas e foi boicotado nos cinemas. O filme foi banido em vários países do mundo e hoje só pode ser encontrado em cinematecas.

Pelo clima que observo em nossos dias, está na hora de ressuscitar a obra de Tod Browning. Tem tudo para fascinar multidões. O distinto público já está preparado.