¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, março 24, 2009
 
QUE TÊM A VER COM ATEÍSMO CRÍTICAS
À BÍBLIA, À IGREJA OU AO PAPA? (II)



Quanto à Bíblia, não é preciso ser ateu para nela ver um livro cheio de contradições. Todo e qualquer estudioso sério do cristianismo não as nega. Para o leitor atento, as incoerências começam já no início do primeiro livro, o Gênesis. No primeiro capítulo, versículo 1: 27, temos:

Criou, pois, Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. 28 Então Deus os abençoou e lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra e sujeitai-a.

Já no segundo capítulo, versículo 2: 21, a história muda:

Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre o homem, e este adormeceu; tomou-lhe, então, uma das costelas, e fechou a carne em seu lugar; 22 e da costela que o senhor Deus lhe tomara, formou a mulher e a trouxe ao homem.

De repente, surge um elemento novo, a costela. Isso sem falar que o pecado de Adão e Eva, segundo um consenso universal, seria o sexo. Mas sem sexo, como frutificar e multiplicar-se? Ou Jeová estava um tanto confuso naqueles dias primevos, quando tudo ainda era caos, ou o hagiógrafo ouviu mal. Ora, se o Livro começa se contradizendo em seus primeiros dois versículos, pode-se imaginar o que vem pela frente, nos outros 72 livros (pelo menos da Bíblia católica), escritos ao longo de 1300 anos, a partir de tradições orais. O mínimo que se pode dizer é que foi irresponsavelmente editorado, sem a revisão de um bom controlador de texto.

Por falar em Gênesis, estudiosos contemporâneos têm visto a fusão de dois livros distintos em um só, resultante da existência anterior de dois deuses, Jeová e Elohim. O Gênesis seria então obra de pelo menos dois redatores, designados pelos estudiosos como o redator javista e o redator eloísta. Jeová é mais antropomórfico, apresenta-se aos homens, entrega pessoalmente as tábuas da lei a Moisés. Elohim, que seria um outro deus, oriundo das tribos do Norte, é mais distante e impessoal. Não fala muito com os homens, manifesta-se geralmente através de arautos. O redator final da obra fundiu Jeová e Elohim, daí a incongruência de diversos momentos do Livro.

Em Êxodo, 3:6, lemos, em uma antiga versão francesa da Bíblia: “Je suis l’Élohim de tes pères, l’Élohim de d’Abraham, l’Élohim d’Isaac, l’Élohim de Jacob”. Em determinado momento, surge a expressão l’Élohim des Élohim, o que nos sugere um deus que é singular e plural ao mesmo tempo.

Para eludir as contradições os tradutores modernos omitiram o incômodo Elohim. Nas versões mais recentes, lemos: “Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó”. Diga-se de passagem, a tendência dos tradutores é eliminar definitivamente também o Jeová, ficando apenas com a palavra Deus. É uma forma de driblar as contradições.

Não é minha pretensão deitar erudição sobre a Bíblia, livro que – modestamente – conheço bastante bem. Mas apenas salientar que o estudo de suas contradições está longe de ser preocupação de ateus. É preocupação de todo estudioso que tenta entendê-la.

Sou ateu, simplesmente. Nunca convidei ninguém a participar de minha descrença. Sou ateu como sou gaúcho, brasileiro, e nunca louvei as supostas virtudes da gauchidade ou da brasilidade. Sou ateu da mesma forma que gosto de vinhos, livros, mulheres ou viagens. São características de minha personalidade que naturalmente determinam meu modo de ver o mundo e minhas opções na vida. Mas não sou nem nunca fui ateu militante.

Deixo isto para os sedentos de Deus.