¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, março 29, 2009
 
À SOMBRA ODIOSA DA ODIOSA
COLUNA DE FERRO EMPARAFUSADA



Os jornais de hoje me lembram que, nesta terça-feira próxima, a Dame de Fer está completando 120 anos. Idade respeitável para uma senhora que, centenária, mantém-se rija, esbelta e charmosa. Vivi quatro anos ao lado dela e jamais a visitei. Durante mais de duas décadas, fui e vim de Paris, sempre me contentando em olhá-la de perto, mas sem penetrar sua intimidade. Nutria até um certo orgulho: moro aqui e jamais subi na torre Eiffel. Parecia-me um tremendo lugar-comum ir a Paris e subir até seu cume. Como abomino lugares-comuns, dela sempre mantive uma respeitosa distância.

No entanto, a considero simpática. Depois de existir, passou a simbolizar Paris e nada mais que isso. Não celebra nenhum combate ou vitória, não evoca nenhum massacre ou fato histórico. Não homenageia nenhum tirano ou estadista, nenhum mártir ou herói, nenhum santo ou deus. É neutra. Cada vez que a vejo, me vem à mente um velho dito francês: soit belle et tais-toi! Seja bela e cale a boca! Muda e silente, não emite mensagem alguma, nem religiosa nem política, nem filosófica nem ideológica. Contenta-se apenas em lembrar que foi erigida para inaugurar a Exposição Universal de 1889. Discreta e ao mesmo tempo escandalosa, é como se apenas dissesse, com suas luzes cintilantes: estou aqui, estou aqui, estou aqui.

Havia um outro motivo, as multidões que a buscam. Subir nela significava esperar duas, três ou mais horas, em filas quilométricas ante suas quatro patas. Ora, nenhum espetáculo do mundo me faz esperar nem mesmo uma hora em uma fila. Brasileiros que me visitavam, mal chegavam logo faziam a proposta obscena: vais nos levar até a torre, não? Ok! Levar, até que eu levo. Mas não subo. Verdade que, um belo dia, eu passeava com a Baixinha pelo Trocadero. Estávamos ali, apenas passeando pela cidade, sem nada para fazer e com o dia todo pela frente. É hoje! – pensei. Não era. Multidões se espremiam em cada pata. Uma das filas era mais curta, teria apenas umas trezentas pessoas. Era a fila para subir a pé. Excusez-moi, chérie, mas não vai ser hoje.

Há uns quatro ou cinco anos, viajando com a Primeira-Namorada, nos aproximamos da velha dama. Só vamos olhar de baixo – já fui alertando – porque nela eu não subo. Rumamos até o vasto espaço circundado por suas patas e, milagre, numa delas havia uma fila curtinha. De novo pensei: é hoje! Era mesmo. Em quinze minutos estávamos no topo. Confesso que não me impressionou muito. O Arco do Triunfo, embora bem mais baixo, dá uma visão bem mais esplendorosa de Paris.

Se hoje a Eiffel é um fato consumado – e de um charme universalmente reconhecido – o mesmo não ocorreu nos dias de sua construção. Os ecochatos são como deus, eternos, e desde Babel sempre se opuseram aos mais belos sonhos da humanidade. No caso de Babel, o ecochato-mór foi o próprio Jeová, que não gostou do humano projeto de chegar ao céu e criou várias línguas para confundir seus construtores. Se bem que já ouvi tese inversa. Que eles falavam várias línguas e só começaram a desentender-se quando passaram a falar uma só. Conhecendo os bois com que lavro, não duvido.

Nos finais do XIX, os ecochatos chamavam-se Alexandre Dumas filho – que, mediocrité oblige, foi o responsável pela criação do mito de Anita Garibaldi –, Huysmans, Guy de Maupassant, François Coppée, Leconte de Lisle, Sully Prudhomme, Charles Garnier, Gounod, etc. Em fevereiro de 1887, um violento panfleto, assinado por estes senhores, foi lançado contra o projeto de Gustave Eiffel:

Nós, escritores, pintores, escultores, arquitetos, amadores apaixonados da beleza até aqui intacta de Paris, viemos protestar com todas nossas forças, com toda nossa indignação, em nome do gosto francês não reconhecido, em nome da arte e da história francesa ameaçadas, contra a ereção, em pleno coração de nossa capital, da inútil e monstruosa torre Eiffel.
(...)
A cidade de Paris irá então se associar por mais tempo aos barrocos, às mercantis imaginações de um construtor de máquinas, para se enfeiar irreparavelmente e se desonrar?
(...)
Basta imaginarmos uma torre vertiginosamente ridícula dominando Paris, como uma negra e gigantesca chaminé de usina, esmagando com sua massa bárbara a Notre-Dame, a Sainte-Chapelle, a torre Saint-Jacques, o Louvre, o Dôme des Invalides, o Arco do Triunfo, todos nossos monumentos humilhados, todas nossas arquiteturas diminuídas, que desaparecerão nesse sonho estupefiante. E durante vinte anos, nós veremos alongar-se sobre a cidade inteira, ainda comovida com o gênio de tantos séculos, como uma mancha de tinta, a sombra odiosa da odiosa coluna de ferro emparafusado.


A impressão que fica deste manifesto é que a altura da torre os incomodava. Uma vez erguida, alguns fizeram marcha a ré e Gounod chegou a defini-la como um concerto nas nuvens. Longa é a jornada dos brutos até o entendimento. O curioso é que os brutos em questão constituíam a elite intelectual de Paris. O que só demonstra que nem os mais brilhantes cérebros de uma nação estão imunes a grandes equívocos.

Gosto da Eiffel. Mal saímos do aeroporto, é o primeiro ícone que se nos apresenta aos olhos. Mesmo chegando pela primeira vez a Paris, temos uma impressão de déjà-vu, como se a torre pertencesse – como de fato pertence – ao imaginário universal. Mas a mais terna lembrança da elegante Dama de Ferro, eu a tenho de outras circunstâncias. Em meus dias de Gália, tive uma amiga francesa que morava na Rue de la Bourdonnais, perto da École Militaire. Jornalista, vivia em uma diminuta chambre de bonne no sétimo andar de um prédio antigo. Sem elevador, é claro. Quando entrei pela primeira vez em seu quarto, um pôster colossal, dourado e desproporcional da torre, me ofuscou os olhos.

Não era pôster. Era a torre que entrava janela adentro, toda trêmula, vestida de um ouro ofuscante. Não digo que tenha sido um concerto nas nuvens. Mas foi um belo dueto, à sombra odiosa da odiosa coluna de ferro emparafusada.