¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, março 23, 2009
 
VIGARICE COM DINHEIRO PÚBLICO
INVADE A GASTRONOMIA NACIONAL



Em novembro de 2002, há mais de seis anos portanto, escrevi:

"Em reação aos bárbaros costumes dos homens do Norte, surgiu na Itália, em 1989, o movimento Slow Food, criado pelo jornalista e gastrônomo Carlo Petrini. O ponto de partida do movimento foi a inauguração, no mesmo ano, de um Mc’Donalds na Piazza di Spagna, em Roma. É de supor-se que de gastronomia Carlo entenda. Como jornalista, não parece se dar bem com as palavras. Para começar, italiano sendo, batiza seu movimento no linguajar dos bárbaros. Por que não Lento Mangiare? Já denotaria então, na própria denominação, a origem italiana desta reação civilizada. Em suma, o movimento foi bem recebido até nos Estados Unidos e o New York Times considerou-o como uma das melhores idéias do ano em 2001. O Slow Food já tem suas representações no Brasil, com grupos ativos em Porto Alegre, Rio e Belo Horizonte e em formação em São Paulo e Salvador.

"Ora, nada há de novo no Slow Food, prática que sempre existiu. Há séculos vem sendo cultuado nessas casas soberbas, que nos esperam sempre de portas abertas, nas ruas e vielas de qualquer capital do Ocidente. E não só nas capitais. Verdade que, nas pequenas cidades brasileiras, cafés e restauração são geralmente um desastre. Mas em qualquer aldeia européia que se preze, lá está aquele oásis acolhedor, que nos refrigera como leque no verão e nos aquece como um útero no inverno. Não é preciso organizar o orgânico. Não há propriamente um contra-ataque aos restaurantes Fast Food, como reivindicam os adeptos do Slow Food. O Fast Food, isto sim, foi um ataque aos hábitos de bem comer.

"Defender a tal de Slow Food é mais ou menos fazer o papel de M. Jourdain, que fazia prosa sem o saber. Nós, adeptos dos antigos restaurantes, desde há muito praticamos a restauração lenta, sem necessidade alguma de nominá-la em língua de bárbaros. Se você, leitor, for um dia convidado a participar da coisa, não caia nessa estratégia de marqueteiros. Vai acabar pagando mais caro pela griffe, por algo que já sem griffe não é exatamente barato. Isso sem falar nessa deplorável falta de dignidade, a de batizar o que seria uma iniciativa italiana na língua do invasor".

Leio no Estadão de ontem sobre a versão tupiniquim da antiga moda: “Por todo o País já são 19 centros Convivium - onde se praticam seus preceitos. Três deles ficam em São Paulo - um na capital e os outros dois em Campinas e Piracicaba. No mundo todo são mais de mil”.

Mas não se trata mais de apenas comer com vagar. A versão brasileira introduziu um toque vegetariano ao que de vegetariano nada tinha. Segundo a reportagem, “o ponto alto da filosofia Slow Food é incutir o prazer de comer bem a todos. Mas, para isso, se faz necessário defender a cultura dos alimentos”. Ora, o que significa comer bem para os tais de conviviuns? É consumir alimentos orgânicos e regionais e degustações de alimentos em risco de extinção. “Esses produtos constam de um catálogo mundial chamada A Arca do Gosto. São 750 alimentos ameaçados no mundo todo, incluindo alguns brasileiros: arroz vermelho, babaçu, bergamota montenegrina, farinha de batata-doce Krahô, marmelada de Santa Luzia, pirarucu, umbu, palmito juçara, guaraná nativo sateré-mawé, feijão canapu e castanha de baru”.

Que tem a ver isso com o comer com vagar? Onde estão as carnes, aves, caça, frutos do mar? Não existem mais peixes no mercado além do pirarucu? Ou para ser Slow Food, os alimentos agora precisam ser ameaçados? E o bom e velho boi, os cordeiros, os frangos e porcos, será que perderam seu lugar na mesa? Desde quando Slow Food é sinônimo de produtos em via de extinção? Integrantes do movimento criaram um menu especial a partir desses alimentos. "É uma dificuldade terrível, porque são produtos de diferentes partes do País, perecíveis e caros para transportar. Nos últimos dois anos, no entanto, conseguimos fazer a Semana Slow, onde não apenas preparamos um menu mas colocamos os produtos à venda", diz Margarida Nogueira, que faz parte da comissão da Arca e inaugurou em novembro de 2000 no Rio o primeiro Convivium brasileiro.

Ou seja, a tal de Arca não ouviu nem metade da missa. O que no fundo não passava de uma reação italiana ao fast food americano, no Brasil virou uma espécie de culto a frutas e vegetais. Me lembra um pouco uma nutricionista que certa vez me forneceu uma lista de alimentos que me seriam saudáveis. Só havia quase frutas e mais da metade delas, se eu quisesse saber do que se tratava, teria de ir ao dicionário. Claro que nem quis saber do que se tratava.

No Brasil nada se perde, tudo se corrompe. Mais uma picaretagem invade a restauração nacional. Aliás, o país está se tornando reserva de caça de chefs que têm seus restaurantes às moscas em Paris, mas pelo fato de terem um restaurante em Paris, cobram fortunas por pratos que antes de parecerem comida mais parecem ikebanas. Como crédulos é o que nunca falta para vigaristas, é até possível que dona Margarida encontre sua clientela.

Ao ler a notícia, suspeitei de dinheiro público no projeto. Lá está: nove dos alimentos inerentes ao Slow Food tupiniquim “fazem parte das Fortalezas, projetos feitos desde 2004 com grupos de pequenos produtores, em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, para protegê-los”.

É natural que um vigarista queira vender seus peixes podres, isto faz parte de seu ofício. O que espanta é que um jornal como o Estadão os compre.