¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV
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segunda-feira, abril 20, 2009
A CORAGEM ASILOU-SE NA POESIA ARGENTINA Quando escrevi Ianoblefe, em 1994, o assassinato de crianças indígenas pelos pais ou parentes era praticamente desconhecido no Brasil. Internacionalmente, a denúncia era antiga e foi trazida a público pela primeira vez pelo antropólogo americano Napoleon Chagnon, em seu livro Yanomamö - The fierce people, que vendeu mais de um milhão de exemplares, desde 1970, quando foi publicado. O escândalo não chegou aqui por uma razão das mais simples. Chagnon estudara os hábitos de uma tribo ianomâmi da Venezuela, onde vivera por cinco anos. Até então não se falava em ianomâmis no Brasil. A palavrinha só surgiu entre nós na década de 70, mais precisamente em 1973, quando uma fotógrafa de nacionalidade indefinida – ora é romena, ora é suíça – Claudia Andujar, a serviço de uma fundação americana, a Guggenheim, resolveu criar uma nação ianomâmi no Brasil. Divulgou mundo afora idílicas fotografias de indígenas de quatro tribos distintas, na fronteira com a Venezuela, aos quais batizou genericamente como ianomâmis. A fotógrafa, em verdade, ianomamizou uma babel de tribos que pouco ou nada tinham a ver entre si. A ficção tomou força na imprensa internacional e os “ianomâmis” passaram a “existir”. Quando Brasília se deu conta de que o reconhecimento de grupos indígenas requeria capacitação em Antropologia, o mal já estava feito: a fotógrafa havia criado uma nação. Cabe lembrar que a profissão de antropólogo, como a de prostituta ou psicanalista, não estão regulamentadas por lei no Brasil. Mesmo assim, em 1992, por um punhado de linhas na mídia internacional, o então presidente Fernando Collor de Mello avalizou a ficção de Andujar, entregando três Bélgicas a dez mil índios (ou talvez menos da metade disso), que só passaram a ser ianomâmis a partir de 1973. Milagre do jornalismo eletrônico: jamais se construiu uma nação em tão pouco tempo. Em seu ensaio, onde estuda grupos ianomâmis na Venezuela, Chagnon descreve um povo primitivo que faz a guerra para obter as mulheres do inimigo morto. Seu estudo em nada fecha com as imagens angelicais da fotógrafa Claudia Andujar. Falando de sua experiência junto ao grupo do ianomâmi Kaobawa, diz o antropólogo: "Entre os mais significativos resultados de minha análise estão os seguintes fatos, que demonstram a natureza e a extensão da violência entre o povo de Kaobawa dentro de uma perspectiva regional: "1. Aproximadamente 40% dos machos adultos participaram do assassinato de outro ianomâmi. A maioria destes (60%) matou só uma pessoa, mas alguns homens foram muitas vezes guerreiros bem-sucedidos e participaram do assassinato de mais de 16 outras pessoas. "2. Aproximadamente 25% de todas as mortes entre machos adultos são devidas à violência. "3. Aproximadamente dois terços das pessoas de 40 ou mais anos perdeu, devido à violência, pelo menos um dos seguintes tipos de parentes biologicamente próximos: pai, irmão ou filho. A maioria deles (57%) perdeu dois ou mais parentes próximos. Isto ajuda a explicar porque um grande número de indivíduos são motivados à vingança. "A mais insólita e impressionante descoberta, que foi discutida e debatida na imprensa e nos jornais acadêmicos, é a relação entre o sucesso militar e o sucesso reprodutivo entre os ianomâmis. Unokais (homens que mataram) têm mais sucesso em obter esposas e, conseqüentemente, têm maior descendência que os homens de sua própria idade que não são unokais. "A explicação mais plausível para esta relação parece ser que os unokais são socialmente recompensados e têm mais prestígio que os outros homens e, por estas razões, são geralmente mais aptos a obter esposas-extras através das quais têm número de filhos além da média". Claro que Chagnon foi excomungado do círculos da antropologia e chegaram a acusá-lo de chegar nas aldeias atirando, para mostrar que era mais feroz que os ianomâmis. Transcrevi estas conclusões de Chagnon em Ianoblefe. Quando publiquei uma síntese de meu livro, na Folha de São Paulo, em 1994, fui acusado de racista e denunciado no Ministério Público Federal, por sete entidades ligadas a antropólogos e missionários, pelo crime de racismo. Claro que a representação morreu na casca. Hoje, quinze anos depois, é de conhecimento público que não só os supostos ianomâmis criados por Andujar, como também diversas outras tribos no país, têm o infanticídio como recurso usual para matar crianças nascidas com deficiências, filhos de mães solteiras ou gêmeos. Já existem inclusive diversas fundações no país que denunciam esta prática infame. Em função de meu recente artigo – “A quem interessar possa” -, recebi mensagens de apoio e links para sites que se propõem a lutar contra o infanticídio nas aldeias. Curiosamente, tanto nestas mensagens como nos sites, encontro apenas comiseração pelas crianças. Nenhuma acusação aos assassinos. É como se o infanticídio fosse uma espécie de fatalidade da vida na selva, algo como uma praga agrícola ou peste bovina, pela qual não há responsáveis visíveis. Não ouvi, nas mensagens que recebi, nenhuma acusação aos bárbaros que cometem tais crimes, nenhum apelo ao Estado para trancafiar na prisão tais criminosos. Pelo jeito, as entidades defensoras das criancinhas, ainda acreditam no mito rousseauneano do “bon sauvage”. Chamar de criminoso um índio que mata, hoje, é arriscar a ser processado por racismo. Afinal, estrangular ou enterrar crianças vivas faz parte de suas sagradas tradições culturais. Não é de hoje que o selvagem é mitificado no Brasil. A ficção vem desde o século XIX, quando o índio era em prosa e verso cantado, como um guerreiro valente e puro, em suma, um poço de virtudes. Para Gonçalves Dias, por exemplo, o índio era uma pobre vítima do monstro europeu: Não sabeis o que o monstro procura? Não sabeis a que vem, o que quer? Vem matar vossos bravos guerreiros, Vem roubar-vos a filha, a mulher! Os tempos mudam. Hoje, tanto europeus como americanos se unem na defesa dos bravos guerreiros que matam suas crias indefesas. Se quisermos encontrar coragem para denunciar a barbárie e crueldade de certas tribos nossas, temos de voltar mais de um século atrás e recorrer a um poeta nosso vizinho. Falo de José Hernández e do poema maior deste continente, Martín Fierro, de 1872. Lá está retratado, um século antes de Napoleon Chagnon, o fierce people que habitava a pampa argentina. Antes que sejam proibidas – o que não me espantaria – reproduzo algumas coplas de Fierro que definem o selvagem de sua época. PS – Ianoblefe pode ser baixado de http://www.ebooksbrasil.org |
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