¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, abril 26, 2009
 
A MOSCA E A VACA

Ney Messias


Não sei quem é o deputado Geraldo Freire, mas vejo que ele é esplêndido como deputado que se esqueceu do resto. Comentam os jornais que este parlamentar, indagado sobre se sabia alguma coisa acerca do recesso parlamentar, respondeu: “Não sei dizer nada. Ainda não pude habituar-me à idéia do recesso. Venho diariamente à Câmara, como se tudo estivesse normal”. Depois citou um filme do Gordo e do Magro, em que o Magro, durante uma guerra, foi posto de sentinela na fronteira da Alemanha com a Alsácia. Veio a paz e esqueceram de comunicar a novidade ao Magro que, depois de vinte anos, foi encontrado em seu posto, caminhando de um lado para o outro. E o deputado Geraldo Freire conclui: “Estou como o Magro, na minha trincheira. Esta sala... o edifício do Congresso! Ainda não me dei conta do recesso”.

Isso é admirável. Dizem que o pingüim chocas os seus ovos nas patas, e que se alguém substitui os ovos por pedrinhas, ele continua chocando sem se aperceber de que não conseguirá descascar pingüins: heroísmo cego da maternidade que choca. Há ainda o caso dos místicos mergulhados nas suas visões transindividuais: com as mãos fechadas não notam o crescimento das unhas nem a passagem do tempo, motivo pelo qual as unhas crescem e atravessam a palma das mãos e vão sair triunfantes no dorso. São casos heróicos como o do Magro posto de sentinela durante vinte anos, sem saber da paz. Tudo isso me lembra a parábola da mosca encharcada de metafísica. “Esta sala... esta cadeira... o edifício do Congresso! Ainda não me dei conta do recesso” – eis o que uma mosca metafísica bem que poderia pensar indefinidamente.

Querem a história da mosca? Pois vou contá-la.

Ela estava pousada na grama do campo, a pensar na definição do indefinível, quando a vaca veio e comeu a grama em que ela sonhava. A divina mosca não interrompeu suas meditações. Quando foi engolida estava pensando no elã vital de Bergson, e em suas relações com a enteléquia de Driesch. Quando passou pela garganta da vaca, sem saber de nada a não ser dos seus transcendentes pensamentos, meditou em que, segundo os ensinamentos de Aristóteles em seu tratado De Anima, Plotino chama a inteligência de “nous poiêticos”, o que quer dizer mente ativa, distinguindo-a do “nous patéticos”, o que quer dizer mente passiva. Embora toda a escuridão em que estava mergulhada, a mosca de heróica metafísica continuou pensando: atrás do universo material, de que nosso corpo faz parte, Plotino e os antigos pensadores da Índia divisam a torrente da vida cósmica que se manifesta no Universo, e da qual o Universo é a expressão. Tudo isso não passa – pensava a mosca – de longe de Heráclito e dos estóicos, a razão imanente do fluir perpétuo das coisas. Mas os estóicos, que professavam um singular panteísmo, faziam do “Logos” ou da “razão seminal” como eles diziam, a causa primária da existência.

A mosca mal sentiu um baque surdo que sacudiu toda sua estrutura entomológica e continuou pensando: talvez estivesse na “razão seminal”, estóica, a “natureza naturante” de Jacob Boheme, que é o Deus que demarrou da “natureza inaturada” para acabar sendo, como todas as moscas, e os demais seres menos importantes da escala animal, a “natureza naturada”, que está perto do júbilo do ser, que é a alegria dos entes que perderam a transcendência mas que ganharam o gozo do pecado e a suprema possibilidade da reconciliação que decorre das paixões dominadas e dos instintos refreados. Pensava nisto a mosca quando abriu os olhos para o mundo aqui e agora do real. Viu então, com espanto, que a vaca já ia longe: viu-a de costas, sacudindo o rabo, no gesto magnífico da plena exoneração. Mas continuou pensando: “o processo mediante o qual, segundo Plotino, o “Uno” se manifesta através do “Nous” e do “Logos” não possui caráter cronológico, mas lógico. É um processo eterno, a processão criadora, a que corresponde, na natureza naturada, o contraprocesso da ascenção reintegradora”.

É como se pensasse: “esta sala... esta cadeira... o edifício do Congresso! Ainda não me dei conta do recesso”, enquanto a vaca se sumia no horizonte, que por acaso não é horizonte algum.