¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, abril 23, 2009
 
O EXTRAORDINÁRIO REPÓRTER


Lula tem a fama de ser o Teflon da política brasileira. Nele nada gruda, nem os escândalos que avaliza, nem as bobagens que profere. Mas pelo menos recebeu a comenda por parte da imprensa. Não é, no entanto, o único em quem nada gruda na política nacional. Por mais alta que seja sua aprovação entre os eleitores, nunca conseguiu erguer-se à condição de reserva moral da nação. Fernando Gabeira sim. Nenhuma das besteiras que cometeu em sua vida – nem seu passado terrorista, nem seu requerimento da bolsa-ditadura ano passado, nem as viagens de sua família com dinheiro do contribuinte – gruda em seu nome. Pelo contrário, continua sendo visto como um dos raros exemplos de honestidade no universo político tupiniquim.

Não bastasse isto, na Folha de São Paulo de ontem, Clóvis Rossi o promove a grande jornalista. “Sou um admirador de Fernando Gabeira desde muito antes de seu envolvimento com a política partidária. É um extraordinário repórter, escreve muitíssimo bem -e quem, como eu, vive há 45 anos de fazer reportagens e escrever (não tão bem quanto ele), só pode admirar os mestres. Na política, ele manteve alta a cota de admiração, pelo que diz, pelo que faz, pelas teses que levanta, pela combinação de sensatez e firmeza com que as defende”.

Tanta sensatez e firmeza que já fez pelo menos três meas culpas de suas mancadas. Renegou seu passado terrorista, a serviço da pior ideologia do século, embora tenha preservado a fama de combatente pela democracia. Renunciou ao bolsa-ditadura, que havia requerido, mas preservou sua imagem de líder impoluto. Arrepende-se publicamente de ter financiado com dinheiro do contribuinte as viagens de suas filhas, mas continua como vítima da “cultura da Casa”, como escreve Rossi. Tadinho do Gabeira. Não sabia que a cultura da Casa era corrupta.

Mas voltemos ao extraordinário repórter, como o define Clóvis Rossi, que “escreve muitíssimo bem - e quem, como eu, vive há 45 anos de fazer reportagens e escrever (não tão bem quanto ele), só pode admirar os mestres”. Esta afirmação só demonstra uma coisa: que Rossi nunca teve de revisar um texto de Gabeira. Eu e meus colegas de Folha tínhamos de copidescá-lo diariamente, quando era correspondente em Berlim. Já vivíamos na era da informatização, mas ainda não havia Internet. Cada despacho seu, enviado por telex, era visto com extremo desconforto pelo jornalista que o recebia para revisar. O brilhante correspondente não tinha noção alguma de acentuação. Para Gabeira, acentos eram como sal. Eles os jogava sobre o texto, sem preocupar-se onde caíam. O que exigia um trabalho exaustivo do redator que o recebia: cada palavra com acento tinha de ser corrigida.

Fosse isso não era nada. Sua frase era boa, seu texto fazia sentido. O problema é que o texto final, o que chegava ao leitor, nada mais tinha que ver com Gabeira. Conto isto em meu livro Como ler jornais (http://www.ebooksbrasil.org). Como o livro é antigo e dele poucos devem lembrar, volto ao assunto.

Guerra da Iugoslávia, 1991, nos dias de independência da Croácia. Eu trabalhava na editoria de Internacional, da Folha de S. Paulo. Nosso correspondente responsável pelo Leste europeu mandava suas matérias de Berlim, que isso de cobrir guerras no front é muito arriscado. Por volta das três horas da tarde, começava a enviar seus despachos, a partir do noticiário dos jornais da manhã. Isto é, os jornais haviam sido redigidos ontem, os fatos ocorridos anteontem e o leitor brasileiro os leria amanhã, com pelo menos três dias de atraso. As agências noticiosas, mais ágeis, nos enviavam notícias fresquinhas. A nós, redatores, cabia substituir o lead da reportagem por material mais quente. Lá pelas cinco da tarde, o despacho enviado caíra para o pé do texto. Quando o correspondente informava que os iugoslavos planejavam um ataque, nós já tínhamos os alvos destruídos e os aviões de volta às bases.

A cobertura da guerra, em verdade, era feita da redação na alameda Barão de Limeira, em São Paulo. Que, de certa forma, estava mais próxima dos fatos que o correspondente na Alemanha. O texto todo era redigido na redação. Começávamos a atualizar a matéria pelo lead e Gabeira ia descendo rumo ao pé. Muitas vezes não sobrava sequer uma linha do despacho original. Mas a matéria saía assinada por Fernando Gabeira, "enviado especial".

Como era feita esta cobertura? O redator recebia um punhado de despachos, que iam sendo renovados a toda hora pelo boy que os retirava do telex. (Eram ainda os dias do telex). Havia matérias quentes das agências, que tinham seus correspondentes no campo de batalha, reportagens frias que davam o clima local, análises de especialistas e informes sobre a repercussão dos fatos nas diferentes capitais do mundo. Cabia ao redator juntar todos esses relatos e criar uma história coerente. Fossem os textos assinados ou não, os fragmentos aproveitados pelo redator eram todos atribuídos ao “correspondente de guerra”, comodamente instalado em Berlim.

A segunda edição do jornal, a que circularia no dia seguinte apenas em São Paulo (na cidade), era fechada lá pela 01h da manhã. Como os redatores da Internacional eram ágeis, o leitor paulistano pelo menos tinha uma visão muito atualizada da guerra, graças ao mestre (apud Rossi) Fernando Gabeira. Ocorre que o texto que chegava ao leitor não era de Gabeira. Era nosso.

Gabeira deveria sentir-se muito surpreso se lesse sua matéria publicada, falando de fatos dos quais ele, o suposto autor do texto, nunca ouvira falar. Mas nunca reclamou, como seria de se esperar de um jornalista honesto.

Este é o extraordinário repórter louvado por Clóvis Rossi.