¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, abril 23, 2009
 
Perversões uspianas:
O DOUTORANDO CARECA



O caso não é pessoal. Para que disto ninguém duvide, transcrevo o que escrevi em 2001: “Entre as muitas anomalias da universidade brasileira estão os mestrandos quarentões. Aquela iniciação à pesquisa, pela qual o candidato deveria optar tão logo terminasse o curso superior, é adiada para uma idade em que do acadêmico já se espera obra consolidada. Pior mesmo, só os doutorados de terceira idade. Marmanjos de cinqüenta e mais anos, em idade de aposentar-se, postulando um título que só vai servir para pendurar junto com as chuteiras. (...) Mestrado não é para carecas. Já um doutorando, este deveria defender sua tese no máximo aos trinta e poucos, para que sua experiência em pesquisa possa ser útil ao ensino e à sociedade. Que mais não seja, é patético ver um homem já maduro humilhando-se, ao tentar iniciar-se em metodologias que devia desde jovem dominar. Na universidade brasileira, o doutorado nem sempre é visto como início de uma carreira, mas como louro a coroar a calva do acadêmico quando este está prestes a usar pijamas. Quem paga tais vaidades senis? Como sempre, o contribuinte”.

Terça-feira passada, leio notícia na Folha de São Paulo sobre um senhor que concluiu mestrado aos 63 anos e doutorado aos 68. Doutorado para quê? Para aposentar-se? Ou para pendurar o diploma na parede para contemplação dos netos? Uma tese de doutorado deveria servir como instrumento de magistério futuro a um professor, não como troféu de caça. Se há nove anos eu já considerava uma anomalia um mestrando careca e considerava que um pesquisador deve doutorar-se aos trinta e poucos, eis que os jornais hoje me apresentam o doutorando careca, mais uma das tantas perversões da universidade brasileira. No caso, a USP.

Pode parecer comovente – como comovem essas vovós que terminam um curso de Direito aos 80 – um senhor em idade provecta submeter-se a uma banca que julgará sua produção intelectual. Banca esta composta naturalmente por professores mais jovens – aos 68 já estariam aposentados -, arrogantes como todos os PhDeuses, que submeterão o doutorando à ditadura do método e à humilhação da censura de um júri. Alessandro Barghini – o doutor em questão - era conhecido por seus colegas como um competente técnico, especialista em planejamento energético. Graduou-se em Ciências Políticas na Universidade de Roma em 1964. Aos 24 anos, portanto, idade adequada para uma graduação. Voltou à universidade com 60 anos e concluiu este ano sua tese de doutorado sobre a influência da luz artificial na vida silvestre.

Seu trabalho como especialista em planejamento energético o levou a diversos lugares do mundo. Motivado por observações de uma temporada de trabalho do Equador e nas ilhas Galápagos, descobriu a América. "Lá, eu trabalhava de dia na parte elétrica e, à noite, no tempo vago, eu observava aves e insetos. Havia uma ave que ficava esperando os insetos baterem na luminária e caírem para comê-los. Ela preferia ficar atrás das lâmpadas a vapor de mercúrio, que atraem mais insetos."

Não li a tese do novel doutor e posso estar cometendo injustiça. Mas não me parece que seja necessário ir até as Galápagos ou ao Equador para descobrir que luzes artificiais atraem insetos. Qualquer criança no campo ou nos centros urbanos está careca – falo agora metaforicamente – de saber disso. “Os ribeirinhos e os caboclos sabem que a luz atrai insetos", diz Barghini. Ora, nossos sambistas também sabiam. Canta Avelino Moreira:

Trocaste o meu samba
E a lua do morro
Pela luz da cidade
Segue o teu caminho Mariposa
Já que esta luz te embriaga
Mas nunca te esqueças Mariposa
Que toda a luz se apaga


Ou Adoniran Barbosa:

As mariposa quando chega o frio
Fica dando volta em volta da lâmpida pra se esquentar
Elas roda, roda, roda e dispois se senta
Em cima do prato da lâmpida pra descansar


Verdade que a linguagem não é lá muito acadêmica, nem os métodos destes observadores serão muito científicos. Claro que também sabiam que luz atrai mosquitos e muriçocas, mas mosquitos e muriçocas nada têm de poético e não é gentil compará-los à mulher amada. Mas decididamente não precisaram ir tão longe para descobrir o que está perto. Dr. Barghini descobriu indícios de que a iluminação artificial perto de áreas selvagens contribui para espalhar doenças como malária, mal de chagas e leishmaniose. Ora, se iluminação artificial atrai insetos que transmitem tais doenças, não é preciso ser nenhum Einstein para concluir que a iluminação artificial perto de áreas selvagens contribui para espalhar doenças como malária, mal de chagas e leishmaniose. O óbvio dispensa o aval de qualquer banca.

Não tenho preconceitos contra doutorandos idosos. Tenho pós-conceitos, o que é diferente. Se alguém quer investir cem mil dólares em si mesmo, para depois pendurar um diploma na parede - ou no currículo - tudo bem. O problema é quando o contribuinte, e particularmente o contribuinte de país pobre, entra com esse montante para satisfazer uma vaidade. Um dos grandes pesquisadores da história nacional, Hélio Silva, fez excelente trabalho de historiador sem jamais ter defendido tese. Diga-se de passagem, era proctologista de formação. Honestamente, não entendo alguém concluindo um doutorado em idade de aposentadoria.