¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, abril 29, 2009
 
Recordar é viver:
A FARRA DOS MINISTROS VOADORES



A ilha da fantasia
Enquanto os ministros
descansam à beira-mar,
num paraíso no Atlântico,
você paga as contas


Sandra Brasil e Vladimir Neto

Caro leitor: como você se sentiria se chegasse a sua casa uma conta de Brasília informando que você, como todos os outros brasileiros, precisa pagar sua parte numa despesa de férias de um servidor do governo? A cobrança nunca chegou nem vai chegar de forma explícita, mas é exatamente isso que está acontecendo. Ministros e outros altos funcionários do governo federal foram descansar e se divertir com a família em fins de semana na paradisíaca ilha de Fernando de Noronha, usando de graça aviões da FAB e lançando despesas na conta de Brasília. Tudo por baixo do pano. Ao preencher a declaração de imposto de renda, cada brasileiro teve de desembolsar sua parcela para cobrir essa mordomia oficial. Até agora, sabe-se que pelo menos seis ministros e dois ex-ministros, além do procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, esticaram até Fernando de Noronha nas asas do pacote gratuito. Como alguns caíram de amores pela ilha, voltaram outras vezes, de modo que as nove autoridades fizeram, pelo menos, dezesseis viagens para lá – sempre com avião oficial e hospedagem gratuita no melhor hotel da ilha, o Hotel de Trânsito, do Ministério da Aeronáutica, um casarão com cinco quartos encarapitado no alto de um morro e de cuja varanda se descortina uma bonita paisagem.

O ministro da Casa Civil, Clóvis Carvalho, já viajou a lazer para a ilha quatro vezes nos jatinhos oficiais da FAB. Uma das viagens, realizada no Carnaval passado, na qual levou a mulher, Gema, os cinco filhos, o namorado de uma filha e a namorada de um filho, ficando por lá uma semana, acabou sendo paga pelo próprio ministro. Ele não pagou pelo passeio. Mas a história acabou saindo na imprensa e o ministro mudou de opinião. Apanhado com a boca na botija, Clóvis Carvalho não teve outro jeito senão fazer um cheque pessoal de 25.000 reais, que foi depositado na conta do governo. Parecia que o problema estava contornado quando se descobriu que o circunspecto Clóvis Carvalho fizera outras três viagens de lazer ao paraíso de Fernando de Noronha – entre janeiro e fevereiro de 1996, 1997 e 1998 –, sobre as quais não deu um pio, mesmo sendo tucano de bico comprido. Para não ter de pagar a conta inteira, que poderia chegar perto dos 100.000 reais, Clóvis Carvalho preferiu silenciar para ver se colava. Não colou. Na semana passada, as três viagens secretas vieram a público. O ministro ainda não deixou claro se pagará ou não.

O procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, cuja função, entre outras coisas, é ficar de olho em quem abusa do patrimônio público, também foi à ilha com a mulher e os filhos em janeiro passado. Sua visita durou dez dias, e ele pagou por ela quatro meses depois, ocasião em que foi divulgada a história da viagem gratuita de Clóvis Carvalho. Brindeiro desembolsou 18.000 reais, antes que alguém fizesse alguma cobrança. Não satisfeito com o ressarcimento, tornou seu gesto público. Exibiu o recibo de pagamento, fez uma nota à imprensa reconhecendo o erro e, na terça-feira, ainda reuniu um grupo de procuradores para pedir desculpas. Na semana passada, descobriu-se que, a exemplo do ministro Clóvis Carvalho, Brindeiro também silenciara sobre duas outras viagens à ilha a bordo de avião da FAB. Aparentemente, o procurador esqueceu essas outras excursões.

Coisa errada – É preciso não perder as medidas quando se discute um assunto como esse da mordomia oficial em Fernando de Noronha. Num país em que bilhões de dólares são torrados a todo momento para cobrir rombos que muitas vezes ocorrem por incompetência do governo, os 25.000 reais que um ministro gasta numa curta escapulida até Fernando de Noronha não representam uma soma de dinheiro tão alta assim. Há aí, no entanto, um problema de transparência, para usar uma palavra da moda. O ministro viaja e não paga. Quando o fato aparece na imprensa, ele corre ao guichê do governo e faz o pagamento. Por quê? Porque sabe que, por mais argumentos que se possa levantar a favor do seu descanso, ele fez coisa errada. Além do problema da transparência, há a questão da transferência. O ministro viaja e, sem que ninguém perceba, o governo transfere a conta aos que pagam impostos. Caracteriza-se, portanto, um comportamento que deve ser evitado.

Há ministros que, se descansam à custa do Erário, ao menos assumem claramente o que fazem. São exceção, é bom que se diga logo. Raul Jungmann, da Política Fundiária, é um deles. Na semana passada, indagado sobre suas três viagens de lazer a Fernando de Noronha, entre 1996 e 1998, sempre em jato oficial e com hospedagem gratuita – para ele, bem entendido –, o ministro não se fez de desentendido, como os colegas. Disse que não paga, a menos que a Justiça o obrigue. Segundo a explicação de Jungmann, mesmo na hora do descanso um funcionário do governo pode ser acionado por uma crise qualquer. "Não somos senhores da nossa agenda. O país precisa de seus ministros a qualquer momento. Como se tira um ministro a qualquer hora de Fernando de Noronha, se não for em avião da FAB? Ou o ministro não merece ter lazer e descansar?" Está aí um servidor que não tenta tergiversar. Com essa ressalva, é bom esclarecer que Jungmann usa um raciocínio duvidoso. Se é preciso um jato da FAB para tirar um ministro de Fernando de Noronha num momento de crise, não é necessário avião oficial para colocá-lo lá no momento de lazer.

"Viajem, aproveitem" – Outro flagrado em viagens de lazer à ilha foi Luiz Felipe Lampreia, ministro das Relações Exteriores, que esteve por lá durante três dias com a família no verão do ano passado. Esse é outro que não desconversa. Reconhece que era puro lazer e lamenta o que fez, sem deixar claro, no entanto, se pretende reembolsar os cofres públicos pelas despesas que causou. "Fiz uma viagem de boa-fé, sem considerar que estava abusando de minhas prerrogativas", afirma o ministro. "De minha parte, daqui em diante somente farei uso individual dos serviços da FAB se houver imperativo absoluto e não existir alternativa de vôo comercial." No meio de uma farra aérea em que a cada dia aparecem mais e mais protagonistas, mais e mais viagens, essa nova atitude do ministro Lampreia não deixa de ser uma boa notícia.

O ex-ministro Gustavo Krause, do Meio Ambiente, dentre todos é o que se sente mais à vontade com seus passeios à ilha. Durante os quatro anos em que ficou no governo, do início ao fim do primeiro mandato do presidente Fernando Henrique, Krause foi três vezes ao arquipélago, duas a trabalho. É um fã de Noronha, a ponto de ter-se tornado uma espécie de agente turístico do local entre seus colegas. "Eu dizia aos ministros: 'Vão lá, viajem, aproveitem' ", conta ele. "Eu defendi que o presidente também fosse lá. Sempre defendi a ida à ilha", completa o ex-ministro. Dentro do governo, a campanha do "viajem, aproveitem" foi um sucesso. O ex-ministro Antonio Kandir, que ocupou a Pasta do Planejamento, conheceu Fernando de Noronha por insistência de Krause. "O meu caso é o mesmo de várias pessoas. Recebi o convite do Krause para ir à ilha, viajar no avião da FAB e ficar hospedado no hotel da Aeronáutica. Estive lá a convite. Não havia nenhuma indicação de que aquilo era irregular", observa o ex-ministro. Kandir não esconde, porém, certo constrangimento. Diz que vai pedir à Aeronáutica que faça as contas para reembolsar o Erário.

Gustavo Krause promoveu tanto a ilha – que pertence a Pernambuco, seu Estado natal – que recebeu o primeiro título de "cidadão noronhense", o que o transformou, mesmo fora do governo, em militante da causa dos ilhéus. "Vou fazer um apelo, como cidadão da ilha, para que os ministros continuem indo lá", diz Krause. De fato, quando ministros visitam Fernando de Noronha acabam se encantando com suas belezas e fazem o que podem para ajudar. O ministro José Serra, hoje na Saúde, visitou o arquipélago a convite de Krause, em setembro de 1995, época em que era ministro do Planejamento. Mas Serra está na categoria dos que não assumem. Sua assessoria garante que a viagem foi a trabalho, para "assegurar" recursos orçamentários à recuperação da estrada que corta a ilha e ao sistema de saneamento do local. O Planejamento, no entanto, não tem nada a ver com estradas. Além disso, a estrada, batizada de Transnoronha, não chega a 8 quilômetros, aparentemente uma obra pequena demais para atrair o interesse e a presença de um ministro. Mas Serra esteve lá em companhia da mulher e um filho, desembarcando em Noronha na sexta-feira à noite e partindo de volta para o continente no domingo à tarde.

De volta a Brasília, o ministro Serra, segundo sua assessoria, empenhou-se com o então ministro dos Transportes, Odacir Klein, para conseguir a verba para consertar a Transnoronha. Como Odacir Klein acabou deixando o ministério, seu sucessor no cargo, Eliseu Padilha, ficou encarregado da tarefa. E achou por bem conferir o local de perto antes de liberar qualquer verba. Afinal, a Transnoronha não era uma rodovia qualquer, tendo merecido a atenção do ministro Serra e do ministro Odacir Klein. Padilha diz que só resolveu embarcar num avião da FAB depois que viu uma reportagem na televisão dizendo que os 8 quilômetros da estrada estavam em péssimas condições. Viajou com sua mulher num fim de semana. Nessa visita, em novembro de 1997, o ministro Padilha mandou tocar a obra da Transnoronha, que àquela altura já estava se tornando a mais popular estrada brasileira entre os ministros de FHC. Em março do ano passado, Padilha voltou à ilha, dessa vez para inaugurar a obra, mas deixou sua mulher em casa. "Faço questão dentro do possível de supervisionar tanto o início como o final da obra", afirma o ministro.

Um dos episódios mais divertidos nessa história das viagens a Noronha foi proporcionado pelo ministro da Educação, Paulo Renato Souza, que visitou a ilha em 1997. Ao se tornar público seu descanso em Fernando de Noronha, sua assessoria emitiu uma nota na qual deu a entender que o ministro fora convidado pelo Ministério da Aeronáutica para conhecer o local. Infelizmente, logo em seguida, a própria Aeronáutica se manifestou dizendo que jamais convidou quem quer que fosse para visitar a ilha a bordo de jatinhos da FAB. O ministro e sua assessoria não tocaram mais no assunto. Paulo Renato até poderia usar o argumento de Serra e Padilha, informando que cumpriu alguma missão oficial, mas não daria certo. De estrada não poderia falar, por mais convincente que fosse o argumento da Transnoronha. Afinal, ministro da Educação tem a ver com escola, não com rodovia. Em Fernando de Noronha, há uma escola, com 530 alunos, e uma pré-escola que atende 170 crianças. Mas o ministro nunca foi visto inspecionando essas unidades educacionais. "Se ele esteve aqui alguma vez, foi disfarçado", diz a diretora da escola Arquipélago Fernando de Noronha, Jaciane Maria Flor, que trabalha lá há quatro anos. "Estamos esquecidos aqui."

Se a moda pega – Até aqui, falou-se apenas de viagens a Fernando de Noronha – mas não é só isso, não. O ministro Francisco Weffort, da Cultura, já realizou 499 viagens em jatinhos da FAB desde sua posse. É o campeão. O vice é o ministro Clóvis Carvalho, com 401 viagens. A maioria no trajeto Brasília–São Paulo, onde mora sua família. Analisando-se o conjunto das viagens da FAB, constata-se que de cada dez viagens ministeriais seis foram nos fins de semana e apenas quatro ocorreram em dias úteis. Isso mostra que os ministros gostam muito de tomar um jatinho oficial para voltar a suas residências. Pode até ser uma coisa aceitável, mas seria bom que a lei permitisse essa prática. Criado em 1956, o Grupo de Transporte Especial, GTE, com 21 aeronaves e sessenta pilotos 24 horas à disposição das autoridades, tinha o objetivo de servir aos ministros em missões oficiais, e, é claro, não em passeios. O congestionamento aéreo de jatos oficiais chegou a tal ponto que, em outubro passado, o então ministro da Aeronáutica, Lélio Lôbo, pediu aos ministros que fossem mais seletivos nas viagens. O número de requisições de avião caiu de 400 para 250 por mês. Mas em janeiro passado o novo ministro da Aeronáutica, Walter Werner Bräuer, achou que as coisas não estavam ainda muito claras, pois os pedidos de avião para viagens de caráter pessoal continuavam sendo feitos.

Assim, em 18 de janeiro, o ministro Werner Bräuer distribuiu um comunicado no qual esclarecia que os aviões existem para servir às autoridades em "eventos oficiais" e para levá-las a "localidades não apoiadas por linhas aéreas regulares". Os ministros voadores alegam que não havia uma regra clara dizendo se podiam ou não usar os aviões oficiais para deixar Brasília de volta a seus Estados no final da semana, ou mesmo para viagens de lazer. Têm razão. A coisa era mesmo dúbia. Na sexta-feira passada, a pedido do presidente Fernando Henrique, o ministro Clóvis Carvalho – logo ele! – aprontou um decreto para disciplinar o uso dos aviões oficiais. No decreto ficam proibidas as viagens de caráter pessoal. As viagens de volta para casa foram autorizadas. Agora está mais claro. O ministro fica sabendo que não pode pedir um jato oficial para uma esticada à praia, da mesma forma que o contribuinte anônimo sempre soube que não está autorizado a tomar um avião da Varig, pago pelo governo, para se aventurar num passeio ao Caribe. Então, ficamos combinados.

Veja, 19/05/99