¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, maio 24, 2009
 
BÍBLIA, MEDICINA E LESBIANISMO


Escreve o leitor Antônio Augusto Silveira Escobar:

Prezado Cristaldo

Tu declaraste, em teu blog, que, na Bíblia, o lesbianismo não é condenado. No entanto, em Rm 1: 26,27 está escrito: "Por isso Deus os entregou a paixões aviltantes: suas mulheres mudaram as relações naturais por relações contra a natureza; igualmente os homens, deixando a relação natural com a mulher, arderam em desejo uns para com os outros, praticando torpezas homens com homens e recebendo em si mesmos a paga da sua aberração".



Meu caro Antônio:

traduzir "relações contra a natureza" por lesbianismo me parece ser um tour de force exagerado. Além disso, é coisa do Paulo que, como se sabe, é bastante perturbado pelas questões sexuais. No Levítico 20:13 lemos: "Se um homem se deitar com outro homem, como se fosse com mulher, ambos terão praticado abominação; certamente serão mortos; o seu sangue será sobre eles". As relações entre mulheres não são evocadas, porque aos olhos dos hebreus só há transgressão sexual quando há penetração.

Ainda no Levítico 20:15: "Se um homem se ajuntar com um animal, certamente será morto;também matareis o animal. Se uma mulher se chegar a algum animal, para ajuntar-se com ele, matarás a mulher e bem assim o animal; certamente serão mortos; o seu sangue será sobre eles". É porque houve penetração. Um dos expoentes do judaísmo rabínico, Maimônides, considera o lesbianismo proibido. Mas não prevê punição alguma para este comportamento, nem mesmo de açoitamento, porque nada existe contra na Torá. Por precaução, aconselha os maridos a vigiar rigorosamente suas mulheres, para que não recebem visitas com tais hábitos. É de supor-se que Rambam, o bom rabino, temesse que as moças descobrissem o bem bom.

A meu ver, nada autoriza interpetrar as "relações contra a natureza" paulinas com lesbianismo. Relações contra a natureza é expressão bem mais abrangente que lesbianismo. Na Suma Teológica, Tomás de Aquino enumera os “vícios contra a natureza”: a masturbação, a bestialidade, o homossexualismo (entendido como conjunção carnal entre duas pessoas do mesmo sexo) e a prática antinatural do coito, mesmo entre pessoas de sexo oposto e inclusive casadas. O Aquinata está falando de sexo oral ou anal. Não visam à reprodução. São, portanto, práticas proibidas.

Aliás, o texto varia de tradução para tradução. Na de João Ferreira de Almeida, por exemplo, lemos: "Pelo que Deus os entregou a paixões infames. Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural no que é contrário à natureza", o que é bem diferente. Considerando-se que Paulo sempre foi um inimigo declarado do prazer carnal, é óbvio que condenaria também as relações entre mulheres. Mas não chegou a falar de torpezas de mulheres com mulheres. Talvez tenha esquecido. O texto é ambíguo e não se pode afirmar com certeza se Paulo se refere ao lesbianismo.

Continua o leitor:

Aproveito o ensejo para contestar, também, as tuas repetidas críticas a respeito de cristãos que procuram ajuda médica de alta qualidade e que atribuem a Deus o sucesso das terapias às quais são submetidos. Em Eclesiástico 38: 1 - 9; 12 -15, está escrito:

"Honra o médico por seus serviços, pois também ele o Senhor criou. Pois é do Altíssimo que vem a cura, como presente que se recebe do rei. A ciência do médico o faz trazer a fronte erguida, ele é admirado pelos grandes. Da terra o Senhor criou os remédios, o homem sensato não os despreza. As águas não foram adoçadas com um lenho para mostrar assim a sua virtude? Ele é quem deu a ciência aos homens, para ser glorificado em suas obras poderosas. Por eles, Ele curou e aliviou, o farmacêutico fez com eles misturas. E assim Suas obras não têm fim, e por Ele o bem-estar se difunde sobre a terra. Filho, não te revoltes na tua doença, mas reza ao Senhor e ele te curará.(...)Depois dá lugar ao médico, porque o Senhor também o criou, não o afastes de ti, porque dele tens necessidade. Há ocasião em que o êxito está entre suas mãos. Pois eles também rezam ao Senhor, para que lhes conceda o favor de um alívio e a cura para salvar-te a vida. O que peca contra o seu Criador, que caia nas mãos do médico".

Segundo a Bíblia de Jerusalém (3.ed., editora Paulus, 2004), esta última frase citada não é uma descortesia em relação aos médicos, e talvez seja necessário adaptá-la desse modo: "Peca diante do seu Criador aquele que quer mostrar-se valente ou soberbo diante do médico".

Grato pela atenção.


Quem agradece é o cronista, Antônio. Quanto aos médicos, duvido que essa gente toda que atribui o sucesso de suas terapias a Deus tenha lido a Bíblia. São milhares, senão milhões, o número de pessoas que consulta médicos e atribui suas curas a uma instância superior. São raríssimos os católicos que sabem da existência do Eclesiástico, como é seu caso. O que tenho visto, no universo que freqüento, são pessoas que atribuem à Bíblia suas idiossincrasias e mesmo concepções contemporâneas de humanismo, afinal Deus não poderia ser o oposto daquilo que hoje se entende como humanismo. Acontece que geralmente o é.

Além do mais, o Eclesiástico é um livro controvertido. Não consta da TaNaK, a Bíblia hebraica. Considerado apócrifo até o século XVI, foi acrescido ao cânone bíblico pelos católicos no Concílio de Trento, com mais dez outros livros. Lutero também o considerava apócrifo e não existe nas bíblias protestantes. Que mais não seja, o vice-presidente José Alencar – o caso que citei na crônica - não pode brandir este texto. Ele é evangélico e os evangélicos, que derivam do protestantismo, não aceitam o Eclesiástico.

Como afirmei, coerência é bom, mas pode matar. José Alencar sabe disso.