¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, maio 31, 2009
 
DE COMO PERDI UMA
CAIXA DE CERVEJAS



A vida é uma sucessão de perdas e ganhos. EsTes são mais freqüentes no início da caminhada, afinal para um jovem tudo que vem pela frente é lucro. Com o tempo os ganhos vão mermando e as perdas dão o ar da graça. Principalmente de amigos. A propósito, até hoje não consegui definir qual o tempo necessário de convívio para que um conhecido se transforme em amigo. Houve época em que imaginei serem dez anos o suficiente. Pelo menos até o dia em que perdi um amigo de infância, relação de mais de quatro décadas. Ele doutourou-se pela USP e passou a ignorar os antigos companheiros de copo e de mesa. Nem mesmo meu doutorado em Paris salvou-me do ostracismo.

Às vezes, a gente perde cervejas.

Eu o conheci quando lecionava na Pós-Graduação em Letras, na UFSC. Foi amor à primeira vista. Já na primeira aula, fomos para a Lagoa da Conceição e terminamos a noite bebendo. De um temperamento esfuziante, sua alegria contaminava quem estivesse a seu lado e mesmo as mesas vizinhas. Tento uma definição: era pessoa que, se estivesse com câncer ou Aids, faria piada da própria doença e levaria todos seus interlocutores a rir com ele... dele mesmo.

Como aluno, foi daqueles que todo professor quer ter. Um professor não consegue fechar uma boa aula sem bons interlocutores e ele foi dos melhores. Já tinha alguns livros publicados quando chegou à Pós-Grad e era leitor dos bons. Só havia uma sombra em nossa relação, eu não conseguia gostar de sua literatura. Li todos os seus livros já publicados na época – e os tenho até hoje em minha biblioteca, com afetuosas dedicatórias –, mas não conseguia encontrar nada em nenhum deles. Tinha apreço pela pessoa, não pelo que escrevia. Como nunca me ocorreu que meus amigos tivessem de gostar do que escrevo, não via nisto problema algum.

Certa vez, fizemos uma aposta. “Em tantos anos (já não lembro quantos) – disse-me –, vou ficar rico com minha literatura”. Duvidei. Disse que para enriquecer com literatura, no Brasil, é preciso satisfazer os baixos instintos do grande público. Ou participar da máfia do livro paradidático. Paulos Coelhos da vida à parte, nenhum escritor faz sucesso no Brasil se não tiver amigos no poder, que impinjam seus livros ao sistema de ensino. Além do mais, ele não vivia no eixo Rio-São Paulo, onde os editores decidem quem vai ser ou não ser best-seller. Apostamos uma caixa de cerveja.

A vida nos separou, como se diz. Fui para Madri, ele voltou para sua cidade. Vim depois para São Paulo, onde nos encontramos algumas vezes. Ele doutorou-se pela USP e continuou lecionando e escrevendo. Quando eu trabalhava na Folha de São Paulo, enviou-me seu último romance. Sem que nada me pedisse, me senti tentado à divulgá-lo, afinal era o trabalho de um bom amigo. Passei o livro ao editor do caderno +MAIS!

- Olha, este livro acaba de ser lançado por um amigo meu, ele vive isolado lá no Sul, podes dar uma colher de chá?
O editor me ofereceu então o cálice do qual eu não esperava beber:
- Ele é seu amigo? Então você mesmo escreve.

Maldita boca esta minha, disse eu a mim mesmo. Durante dias e noites, olhei o livro por todos os ângulos, queria encontrar nele algo valioso, que sustentasse uma recomendação aos leitores. Não encontrei nada. Falo então do autor, pensei. Não era o caso, a resenha teria de ser sobre o livro. Voltei ao editor. Me desculpa, mas não consigo escrever a resenha. O livro não é bom? Então deixa pra lá.

Eu estava entre a cruz e a espada. Dado meu apreço ao autor, não conseguia queimar o livro. Elogiá-lo, muito menos. Seria vender gato por lebre para meus leitores. E meus leitores sempre me cobram. Me senti então na obrigação de comunicar o acontecido a meu amigo. Vivíamos ainda na época pré-internética, escrevi uma carta. Era nossa forma de comunicação. Resumo da ópera: ele nunca mais me escreveu.

Respeitei seu silêncio e também permaneci silente. Meus amigos sempre foram escassos. Se for contá-los nos dedos, sobram dedos. Naquele dia, sobrou mais um. Me lembrei da ruptura entre Sartre e Camus. Para Sartre, amizade não admitia discordâncias. "L'amitié, elle aussi, tend à devenir totalitaire; il faut l'accord en tout ou la brouille, et les sans-parti eux-mêmes se comportent en militants de partis imaginaires".

Paciência, que se vai fazer? Ele continuou insistindo em sua literatura. Ano passado, recebeu nada menos que cinco prêmios literários. O que, para mim, tornou-o altamente suspeito. Ora, ninguém recebe cinco prêmios literários num ano só por méritos literários. Fosse como fosse, achei que ele deveria estar muito feliz e me senti contente com isso.

Leio agora que um de seus livros foi recolhido pela Secretária de Educação de Santa Catarina, da rede de ensino médio, por seu conteúdo erótico. A Folha transcreve o que os donos da cultura catarinense consideram erótico: dois ou três palavrões e uma chupada. Nada que seja estranho a um adolescente. Mas o ensino oficial é isso mesmo. Sempre considera que alunos são castas almas sem sexualidade alguma. Intimamente, me solidarizei com meu ex-companheiro de botecos.

Mas havia algo mais na notícia. De acordo com nota oficial da pasta, o recolhimento foi determinado após dois professores lerem o livro antes da utilização em sala e comunicarem aos superiores. Foram recolhidos nas escolas 130 mil exemplares da obra.
Ou seja, o homem havia feito contato a máfia e passara a participar da confraria dos autores compulsórios.

Interrogado sobre o recolhimento de seus livros, disse: "Eu soube da interdição e fiquei horrorizado com isso". Curiosamente, não se horroriza com o fato de ter 130 mil exemplares de sua obra empurrados goela abaixo de 130 mil alunos.

Tinha razão. Vai ficar rico, se já não é. A vida são perdas e ganhos, dizia. Vejo que perdi uma caixa de cervejas.