¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, junho 24, 2009
 
Crônica antiga:
O BOLCHE E OS ASTROS



Em O Jardim das Aflições, o astrólogo Olavo de Carvalho afirma ser difícil "um sujeito acreditar na influência dos astros e na luta de classes como motores da história". Ocorre que estamos no Brasil, onde o inimaginável não só não é difícil, como perfeitamente viável. Depois que um testemunho do Além, psicografado por Chico Xavier, já serviu de prova em um tribunal, tudo é possível. Um projeto que regulamenta a profissão de astrólogo foi aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado e agora aguarda votação no plenário. De autoria do senador Artur da Távola, líder do governo no Senado, a proposta define quem poderá exercer a astrologia e as atribuições dos profissionais, entre elas, o "cálculo e elaboração de cartas astrológicas de pessoas, entidades jurídicas e nações utilizando tabelas e gráficos do movimento dos astros para satisfazer às indagações do público".

O Brasil tem vocação para único. Único pentacampeão de futebol, é também o único país no mundo que exige curso superior para o exercício da profissão de jornalista. Possivelmente é também o único em que um bolchevique histórico propõe a regulamentação de uma crendice. Ou melhor, de uma vigarice, pois de outra forma não se pode chamar a exploração de superstições. Se aprovado no plenário do Congresso, teremos reconhecido a um grupo seleto de vigaristas o direito exclusivo de enganar simplórios. Há uma febre nacional corporativista. Ano passado, na Bahia, até as vendedoras de acarajé tentaram regulamentar a profissão. Como crentes evangelistas passaram a vender nas ruas o bolinho de feijão, persuadiram uma vereadora a apresentar projeto de lei que proíbe o preparo ou venda de acarajé por qualquer estabelecimento comercial, incluindo shoppings, restaurantes e bares. Só mãe-de-santo pode vender acarajé. Agora, pelo projeto do senador, só astrólogos legalmente habilitados poderão exercer a astrologia. Quanto à astronomia, ciência há séculos consolidada, seu exercício ainda não foi regulamentado.

Em meus dias de foca em Porto Alegre, na falta de redator, redigi por várias semanas a coluna de astrologia do finado Diário de Notícias. Ninguém reclamou, nem os astros nem seus regidos. O único protesto, que quase me custou o emprego, foi do editor do jornal, quando foi verificar porque eu ria tanto enquanto redigia. Se passa o projeto do senador, este avatar do qual nenhum foca escapava naqueles dias, seria hoje considerado exercício ilegal da profissão.

Nada de espantar neste país em que o governo do Estado de Santa Catarina pagava a fundação Cacique Cobra Coral, "entidade esotérica-científica", para fazer a previsão do tempo. O cacique Cobra Coral é um indígena americano que, em outras encarnações, teria sido Galileu Galilei e Abraham Lincoln. Seu espírito se manifesta através da médium Adelaide Scritori, que já fez chover na Sérvia a pedido do presidente Sadam Hussein, para deter o avanço das tropas da OTAN. Cobra Coral pode empurrar uma frente fria de um lugar para outro, derrubar um centro de pressão atmosférica evitando um tufão e até fazer sumir uma geada. A Fundação, cujo lema é "luz que ilumina os fracos e confunde os poderosos", informa em seu site que tem como clientes governos estaduais, ministérios, multinacionais, e políticos, como o governador de Santa Catarina, Esperidião Amin, o ex-presidente José Sarney e o senador Gerson Camata.

O diretor da empresa Tunikito Corporation, controlada pela fundação, esteve ano passado com o senador Eduardo Suplicy, para mostrar-lhe cópia da carta enviada ao então ministro de Minas e Energia, Raimundo Brito, onde previa o blecaute no Centro-Sul do país na primeira quinzena de março. Enfim, dada a crença de ex-presidentes, governadores, ministros e senadores pátrios no sobrenatural, não causa espécie que o velho bolchevique impenitente tenha proposto a seus pares no Senado a regulamentação do ofício de intérprete da vontade dos astros.

Aprovado o texto, teremos muito em breve uma Faculdade de Astrologia, com mestrados e doutorados na área. Astrólogos devidamente diplomados seriam contratados pelos organismos públicos para atuar na seleção de pessoal, previsão de catástrofes, flutuações do câmbio e campanhas eleitorais. Paralelamente à Ouvidoria Geral da República, teríamos uma Vidência Geral da República ou algo parecido, "para satisfazer às indagações do público", como quer o senador.

Quanto à imprensa, caluda! Nenhum jornal, por mais sério que se pretenda, dispensa sua coluna diária de astrologia. Há milhões de leitores, no mundo todo, que só põem as mãos num jornal para ver o que dizem os astros. Empresário algum, por mais avesso que seja a crendices, pensaria em não atender as angústias desta massa informe de crédulos. Se a própria imprensa, que se pretende crítica, endossa a vigarice, não é de espantar que seus colunistas de astrologia se sintam valorizados com a nova lei. De qualquer forma, em uma cultura dominada por sacerdotes que exploram o cadáver de um judeu, que além de ser deus seria filho de mãe virgem, engodo a mais engodo a menos não faz a menor diferença.

Mas não discriminemos os demais vendedores de vento. Urge regulamentar ainda ofícios fundamentais ao bem-estar psíquico da nação. Não se pode deixar ao desabrigo da legislação trabalhista profissionais como pais e mães-de-santo, médiuns, cartomantes, quiromantes, jogadores de búzios, leitores de borra de café.

E – last but not least – os psicanalistas, que também são filhos de Deus e dependem da credulidade pública.

(07/07/2002)