¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, junho 27, 2009
 
HABEAS COPUS


Alexandre, voltando do sacrifício, reuniu para a ceia diversos amigos seus e generais e ofereceu um prêmio para aquele que mais bebesse. O vencedor foi Promaco, que bebeu doze litros de vinho e recebeu um talento como prêmio de sua vitória, morrendo três dias depois. Dos outros convivas, morreram quarenta e um em conseqüência da orgia, acometidos de um frio violentíssimo, enquanto perdurava o estado de embriaguez. É o que conta Plutarco, em Vidas Paralelas.

Enfim, não exageremos. Beber é bom. Mas devagar. Meu primeiro porre, devo tê-lo tomado lá pelos quinze anos. Não diria que foi involuntário. Mais que isso, foi necessário. Guri ainda, lá de vez em quando eu tomava algum gole de cachaça, mas não mais que isso. Me agradava o ardor da caninha ao descer pelo garganta. Vivia no campo e dependia de carona para ir até a cidade. Certo dia, peguei carona com o Toto Ferreira. Quem tem minha idade e conheceu Três Vendas e Upamaruty, sabe quem foi Toto Ferreira. Ou seja, raras pessoas tiveram o privilégio de conhecê-lo.

Mal entrei em seu jipe, me passou uma garrafa de Bacacheri. “Beija” – me disse. Beijei. De beijo em beijo, atravessamos Ponche Verde e rumamos a Dom Pedrito, o jipe sacolejando pelos barrancos. Ele tinha verve e me contava histórias daqueles pagos. “Quando eu bebo, as palavras flueeeemmm”.

Eu era novato, mas não maturrango. Se ele bebesse a garrafa toda, talvez não chegássemos a Dom Pedrito. A salvação era empinar pelo menos a metade. Foi o que fiz. Chegamos bêbados à cidade, mas pelo menos inteiros. Até hoje não esqueço aquela frase magistral: quando bebo as palavras flueeeemmm. Comigo também acontece.

O problema é que às vezes – e não poucas – acabo esquecendo o que disse. Certa vez, numa festa no Rio de Janeiro, brilhei quando minhas palavras começaram a fluir. Disse alguma coisa que deixou minha platéia perplexa. Quem disse isso? – perguntou-me um psicanalista. Que eu saiba, ninguém – respondi -. Quem está dizendo sou eu. “Disseste algo genial naquela noite” – escreveu-me um amigo. Maravilha! Mas havia dito o quê? Nem ele nem eu lembrávamos mais. Um de meus grandes momentos ficou perdido numa madrugada regada com o sangue das uvas.

Lá pelos 70, aprendi algo que não recomendo a ninguém. Aprendi a beber sem embriagar-me. Aconteceu em Liverpool. Eu era hóspede de um cônsul uruguaio na Inglaterra. Bastante inculto, dominava no entanto a arte de bem beber. Diplomata, tinha direito a spirits isentos de imposto. Como o embaixador não bebia, se beneficiava de uma cota extra. Sua casa era uma festa para bebuns. Havia uísques, vinhos, cachaças, grapas, akvavits, kirschwassers, calvás, chinchons, orujos por toda parte. Em armários, guarda-roupas e até mesmo debaixo das camas. Arsenal para enfrentar longas guerras. Gaúchos, começávamos a manhã com chimarrão. Lá pelas onze, um scotch. E o dia assim prosseguia, até um armagnac ou strega em final de noite. Como se bebe o dia todo sem se embriagar, não vou contar. Não quero condenar meus leitores ao oblívio.

Não que eu beba o dia todo. Viajando, até pode ser. Não tanto pelo beber, mas pelo gosto de bater ponto em cada tasca onde vivi dias felizes. Há viagens em que me atrapalho, particularmente quando em Viena, Roma, Paris ou Madri. Quero revisitar todos meus bares e os dias são curtos. Viena é uma desgraça. Você poder passar lá um mês e não consegue fazer todos aqueles cafés cheios de charme.

Há horas tento convencer meus médicos de que beber, pelo menos para quem sabe beber, não tem muito a ver com álcool. Falarei de vinhos. Tão importantes quanto o vinho são, a meu ver, a cor do vinho, a forma da taça, a comida que vai junto. Isso sem falar do lugar onde se bebe. Vinho não se bebe com sanduíche, muito menos com qualquer um. A cozinha tem de ser boa e a companhia também. Isso sem falar no ambiente. Mesas de madeira e paredes revestidas de madeira, se possível. Mármores e lustres também são bem-vindos. Jamais tomaria vinho nessas mesas de plástico abomináveis que estão infestando o universo todo. Vinho exige também toalhas. E nada de rádio ou televisão.

Mas talvez o mais importante seja a pessoa com quem se está. Abstêmias que me perdoem, mas não concebo conversar com água com uma amiga que quero bem. As palavras até que fluem sem vinho, mas não com a melhor das fluências. Estou ressuscitando de um longo semestre de lei seca, no qual me abstive até mesmo do convívio com minha gente. Um médico, empunhando os horrores do inferno, me prescreveu um ano sem beber. Outro, apreciador da boa mesa, foi mais leniente: só durante o tratamento. Só que o tratamento parecia não mais acabar. Já estava pensando em levá-lo às barras dos tribunais, impetrar um habeas copus em defesa da bona-chira e da boa charla. Não foi preciso. Estou finalmente liberado. Amici miei venite qui.

Não há consenso na medicina sobre o vinho. Em fevereiro passado, uma pesquisa do INCA (Instituto Nacional do Câncer, da França), assegurava que uma taça diária de vinho constituía fator cancerígeno. Em março, a reação. Uma outra pesquisa médica afirmava que o vinho – e só o vinho entre as bebidas alcoólicas – era benéfico para pelo menos vinte tipos de câncer. In dubio, fico com Verdi. Habeas copus:

Libiam ne' lieti calici
Che la bellezza infiora,
E la fuggevol ora
S'inebri a volutta'.

Libiam ne' dolci fremiti
Che suscita l'amore,
Poiche' quell'occhio al core
Onnipotente va.

Libiamo, amor fra i calici
Piu' caldi baci avra'.