¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, junho 20, 2009
 
SOBRE CULINÁRIA E JORNALISMO


Em São Paulo, convivi com três amigos que eram cozinheiros de escol e me propiciaram grandes momentos à mesa. Jornalista, sempre invejei quem sabe cozinhar. É ofício que exige arte e longo aprendizado. Não eram profissionais da cozinha, estes amigos. Ganhavam a vida com outras profissões. Mas tinham como pedra de toque o queimar panelas. Em um de nossos ágapes, comparávamos nossos ofícios. Eu dizia não saber se tinha ganho mais amigos ou mais inimigos no jornalismo. “Eu só faço amigos” – disse-me um deles. “Meu ofício é dar prazer”.

Não deixava de ter razão. Ocorre que era cozinheiro nas horas vagas. Fosse profissional e fizesse concorrência a um restaurante, certamente não faria apenas amigos. Seja como for, cozinhar é agradar. Tive experiência disto nos primórdios da Internet, quando discutia nos newsgroups da Usenet. Eu navegava pelos grupos soc.culture, envenenados de ideologia. Os participantes destilavam ódio e invariavelmente acabavam se insultando. Certo dia, visitei grupos gastronômicos. Lá era tudo paz e amor, pessoas indicando bons restaurantes, trocando boas receitas e louvando o vinho e a bona-chira. E aqui vai uma diferença fundamental entre jornalismo e culinária. Se culinária tem por finalidade agradar, jornalismo o mais das vezes desagrada.

Se algo me espanta nesta discussão sobre o fim da exigência do diploma para jornalistas, é ver pessoas que julgam que esta exigência sempre existiu, em toda a parte e desde o início dos tempos. Ora, como a jaboticaba, só existe no Brasil. (E se só existe no Brasil e não é jaboticaba, boa coisa não há de ser). Além do mais, existe há apenas 40 anos. O jornalismo brasileiro tem dois séculos de existência e nestes últimos dois só se exigiu diploma a partir de 1969. Os defensores do diploma esquecem – ou preferem não lembrar – que a famigerada lei não foi fruto de reivindicações de classe, mas imposição ditatorial de uma junta militar. Brasileiro adora reserva de mercado. Se ela é cria de uma ditadura, pouco importa. Bem-vinda seja.

O ministro Gilmar Mendes tem sido execrado por ter comparado jornalistas a cozinheiros ao justificar seu voto: “Um excelente chef de cozinha certamente poderá ser formado numa faculdade de culinária, o que não legitima o Estado a exigir que toda e qualquer refeição seja feita por profissional registrado mediante diploma de curso superior nessa área”, afirmou. Espero que não tenha dado uma boa idéia à guilda dos candidatos a cozinheiro. Porque neste país onde até uma profissão inútil como a de ascensorista é regulamentada, não seria de espantar que algum político em busca de clientela pretendesse regulamentar a de cozinheiro.

O ministro foi tido como alguém que rebaixou a profissão de jornalista, o que está longe de ser evidente. Um chef competente, hoje, é mais disputado e melhor pago do que milhares de jornalistas. Existem cursos de culinária, é verdade. Mas cozinheiros se formam é na cozinha, junto ao fogo e às panelas. Da mesma forma, o jornalista. Faculdade pode ajudar. Mas quatro anos de curso não dão a formação de três meses de redação.

As notícias chegam hoje e o jornal tem de sair ainda hoje, para estar nas bancas amanhã cedo. Jornalista trabalha contra o relógio. Este relógio não existe nos cursos universitários, onde não há deadline. Estudante algum de jornalismo experimenta a tensão do fechamento de um grande jornal. Esta adrenalina só existe na redação. O jornalista até pode falhar em meio a um fechamento. Se falhou é porque não era jornalista.

“Com o fim do diploma e sem outras normas que regulem a atividade profissional, quais os critérios que serão utilizados para a contratação de jornalistas?” – pergunta-se uma militante da guilda. Ora, moça, os critérios que sempre regularam a profissão em todos os tempos e em todos os países: informação, capacidade de análise, boa redação, velocidade e agilidade mental.

Pessoalmente, considero o jornal uma espécie de milagre cotidiano. As informações chegam em massa e desordenadamente à redação. Cabe ao redator ordená-las, colocá-las em boa forma e dentro de um espaço preciso. Algo como a confecção de um soneto. O espaço jornalístico é um leito de Procusto. A informação tem de caber – com uma margem de poucos toques a mais ou menos – dentro de um espaço exato. É uma das raras profissões em que não se leva tarefa para casa. Feito o jornal, feito está. Amanhã é outro dia. Outros fatos, outros problemas, outras soluções. Este outro dia acaba no mesmo dia. Na manhã seguinte, voilà: o milagre está nas bancas.

Argumentam os corporativistas que, sem universidade, faltaria ética aos jornalistas. Como se ética fosse coisa que se adquirisse em salas de aula. O mundo está cheio de canalhas com diploma superior. Ética não é coisa que se aprenda na escola. O profissional é honesto – ou não é. Ser honesto é qualidade pessoal e intransferível e não virtude que possa ser ensinada.

“Nós, que cursamos jornalismo, vamos agora jogar fora nosso diploma?” – pergunta-se um outro aprendiz de sofista. Não precisa jogar fora. O diploma pode até ser um trunfo. Só que agora este universitário terá de competir com milhares de outras pessoas também habilitadas ao jornalismo. Os cursos de jornalismo produziram milhares de desempregados. Antes de 69, não havia jornalista desempregado. Era jornalista quem trabalhava como jornalista. Depois de 69, jornalista era quem cursava jornalismo. Ocorre que no mercado não havia lugar para as fornadas de jovens despejadas pelas faculdades.

Os defensores de privilégios já estão se mobilizando para voltar aos anos de obscurantismo. Que uma velha raposa lute para preservar seus privilégios, até que entendo. O triste é ver jovens defendendo o direito à corrupção. Culinária e jornalismo pertencem ao território das artes. Arte não é coisa que professor ensine.