¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

segunda-feira, junho 22, 2009
 
UNIVERSIDADES (IV)


Falava das cinco universidades que freqüentei e do pouco que me deram. Mas houve uma sexta, e a mais importante, a universidade das ruas, dos bares e dos amigos. As leituras que foram importantes em minha vida, não as encontrei na academia. Raramente se falava de Nietzsche em meu curso de Filosofia, e quando se falava era despectivamente. Não fiz Letras, mas conheci alunos de Letras. De modo geral, desconhciam Cervantes, Dostoievski, Swift ou Orwell. Mas conheciam os Machadinhos da vida. Ora, direis, estás falando dos cursos de Letras orientados à Literatura Brasileira. Pode ser. Mas não se conhece, nem se pode emitir juízo de valor sobre uma literatura nova sem conhecer as antigas.

Em José Hernández, o poeta maior do continente, fui iniciado por meu pai, homem nascido no campo e sem acesso algum à cultura urbana. Gaúcho de Livramento, nasci embalado pelas sextilhas hernandianas. Nas madrugadas lá da Linha, na fronteira seca entre Uruguai e Brasil, antes de buscar as vacas em meio à cerração, sempre se tomava um mate ao redor do fogo no galpão. Enquanto eu chorava com a fumaça de algum cavaco de madeira verde, meu pai recitava as coplas de Fierro.

Chamavam-no de Canário. Não era homem de Letras. Se lhe perguntassem onde ficava a Europa, meu pai diria sem vacilar: “é lá pras bandas de Passo Fundo”. No que não deixava de ter razão. Vista de um homem postado em Livramento, a Europa fica sem dúvida para os lados de Passo Fundo. No entanto, conhecia de cor centenas de versos de Fierro. Não sei se ouvira falar de Hernández. E aqui se revela o milagre da grande arte: como no Quixote, o personagem acaba por matar o autor. Fierro, para os gaúchos da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, era um índio vago que por ali havia passado, sempre lutando para defender seu pelego. Talvez até mesmo estivesse vivo, sempre fugindo de “la polecía”.

José Hernández, nuestro vecino, terá sido um dos raros poetas a sentir, ainda em vida, a ventura de ter sido morto pelo personagem que criou. Antes mesmo da publicação da segunda parte do poema, já era conhecido como Martín Fierro: “Soy un padre al cual le ha dado su nombre su hijo”, costumava dizer. Ao morrer, um jornal de La Plata deu-lhe a maior honra que pode merecer um escritor:

HA MUERTO EL SENADOR MARTÍN FIERRO

Apesar de ter criado um poema de impossível tradução, o “senador Martín Fierro” tem suas coplas traduzidas nas mais importantes línguas do Ocidente. Entre nós, apesar de ter vivido em Santana do Livramento, onde teria iniciado seu poema, é desconhecido. Pergunte hoje, leitor, em um curso de Letras no Brasil, quem conhece José Hernández. Ninguém conhece. Nos anos 90, ministrei um rápido curso sobre o poema, na Universidade de Passo Fundo, cidade do Rio Grande do Sul que se orgulha de sua gauchidade. Nenhum de meus alunos ouvira falar de Fierro.

Tenho uma definição muito pessoal de gaúcho. Se interpelar alguém com os primeiros versos de Martín Fierro e se meu interlocutor não continuar a sextilha, não é gaúcho. Pode ser até rio-grandense, mas gaúcho não é. Não se pode confundir este personagem ligado à pampa e ao cavalo, com seres urbanos nascidos no asfalto.
Em algum final de noite dos anos 90 em Paris, encontrei uma uruguaia que vivia na Noruega, em Oslo, e se dizia gaúcha. Dei o santo:

Aqui me pongo a cantar
al compás de la vigüela,


Ela deu a senha:

que el hombre que lo desvela
una pena estrordinaria,
como la ave solitaria
con el cantar se consuela.


Era gaúcha, sem dúvida alguma. O mesmo eu não poderia afirmar das centenas de pessoas que encontrei em meus dias de Porto Alegre. Pois o poema maior que o continente latino-americano deu à literatura universal, de um modo geral, é desconhecido pelos habitantes da capital de um Estado que se pretende gaúcho.

Alguns anos antes da reunificação alemã, estive em Berlim Ocidental, em plena "Semana Martín Fierro". Era hóspede de uma estudante de Letras de origem italiana, nascida no Rio Grande do Sul. Ela não sabia se José Hernández era açougueiro ou alfaiate. Quando soube que o poema começara a ser escrito no exílio do senador argentino em Santana do Livramento, achou que eu delirava. Foi consultar uma enciclopédia literária alemã, lá estaria a verdade. Pois lá estava a verdade: os dicionaristas concediam várias páginas a nosso vizinho e o comparavam – nada mais, nada menos – a Homero. Acabei sendo convidado para uma palestra na Freie Universität Berlin. E repeti com gosto, para os Deutschen, aquelas coplas que um dia ouvi, não na universidade, mas da boca de meu pai, em um galpão no Upamaruty.

Em Paris, quando defendia uma tese de doutorado em Literatura Comparada, tive a honra de ter no júri M. Paul Verdevoye. A parte de ser um dos grandes divulgadores da literatura latino-americana na Europa, era o tradutor do poema de Hernández ao francês. Tradução a meu ver inviável. Mas - diz-se entre tradutores - se traduzir é impossível, traduzir também é necessário.

Tive ainda um outro reencontro com estes versos de minha infância lá no outro lado do Atlântico. Em Las Palmas de Gran Canaria, encontrei um professor universitário, arabista de renome, cuja pedra de toque era o conhecimento do poema argentino. Naquela ilha vulcânica, batida pelos ventos da África, tão estranha à pampa gaúcha, o homem deslumbrava platéias canarinas recitando a saga de Fierro.