¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, julho 23, 2009
 
AINDA OS DOUTORADOS


Prezado Janer,

Se alguém indagasse qual seria o primeiro atributo responsável pelas minhas constantes visitas ao seu eclético diário eletrônico, eu responderia: o notório capricho literário. Estimo intensamente esse cuidado. (Apesar de não conseguir ser nem tão ateu nem entender que o velho Olavão, como certo leitor afirmou, encarne o modelo perfeito da figura vulgar. Sejamos honestos, ele passa longe disso. Não permitamos nossa descrença imputar talento intelectual exclusivamente aos descrentes; tomemos um pouco de ar, façamos um esforço e, por favor, lembremos de Aquino, Agostinho, Mestre Eckhart, Chesterton, Leibniz, Kierkegaard, Jaspers, Pascal, René Girard e etc.

Pergunto-me o seguinte: todos esses jovens que vêem na incredulidade um triunfo arrasador imaginam, sem trair seus instintos, ter superado intelectualmente e espi ritualmente aqueles mestres? Pensam? Conseguem mesmo encarar esses e outros colossos da raça humana com seus focinhos orgulhosamente elevados, como quem dissesse "são pobres ultrapassados"? Será? Acho melhor não especular sobre uma resposta positiva a essa questão. Pois se assim for então é porque a barbárie, ao que tudo indica, vive em estado latente tanto em homens e mulheres privados de qualquer senso educacional autêntico quanto naqueles intumescidos pela "educação". Igualmente discordaremos quanto à relevância de Edmund Husserl. Enfim...). Voltemos. Sem ignorar sua oportuna ressalva - "refiro-me às ciências humanas" - parece-me conveniente fazer uma diversa. Antes dela, gostaria de associar-me a tua voz quando se mostra contrária a realização de pós-graduações por indivíduos já próximos de idade provecta. Não entrarei em detalhes, mas admito casos realmente patéticos.

Defendi tese aos 35 anos (esse semestre), e, sinceramente, acho que já conclui na idade limite. Aos 29, época da minha decisão, somente iniciei após bem assimilar os vários conselhos de amigos e constatar que, afinal, aos 35 ainda não seria tão tarde assim. Encontrei valioso estímulo psicológico no manifesto fato de ótimos matemáticos nacionais — aqui revela-se meu campo de estudos acadêmicos - terem defendido suas dissertações com a mesma idade ou até mais velhos. No meu caso, após anos de uma juventude completamente entregue ao absurdo (o que não deixou de constituir um acréscimo à resolução de estudar), praticamente um conto de Kafka, resolvi iniciar meu doutorado. Por quê?

Primeiro, por aceitar com relativa tranqüilidade as argumentações algébrico-geométricas, e segundo porque, no meu entender, e aí talvez esteja uma das raízes da minha biografia fantástica, o único ouro que justifica a busca sempre foi o tempo disponível; não, evidentemente, no cretino sentido adquirido em frases como "tempo é dinheiro", mas no de que nele, sim, está a vida. Por este motivo, e apenas por ele, resolvi aventurar-me nessa empreitada. Não queria chegar aos 45 como mero batedor de carimbos, ou fiscal da receita, oficial de justiça, ou de precisar me submeter aos dísticos humilhantes da empresa privada desses nossos dias - "vista a camisa", "atualize-se regularmente", "dê o sangue pelo grupo".

Como professor universitário, especificamente incluído no deserto inabitado e antipatizado do Cálculo, tenho a liberdade de não ser burocrata (um dos poucos empregos públicos nos quais isso é possível), de não ter qualquer "chefe" nem de muito menos ser um deles. Além disso, posso ler o que me interessa, sem precisar especializar-me em "crítica desconstrucionista", ou ter de defender a glória humanística erigida por Fulano. Tenho, portanto, tempo para Geometria de Riemman, mas também para Swedenborg ou André Gide. (Há outro detalhe conveniente: em proveito dos seus pesquisadores, a matemática tem sua estética própria e jamais prescindirá dela. O espírito da "teoria literária" não encontra abrigo na ciência de Gauss e Euler).

Chesterton estava correto ao notar que "a enorme heresia moderna é alterar a alma humana para adaptá-la às condições impostas à vida, em vez de alterar as condições para adaptá-las à alma". No amor ao tempo livre sou, confesso o crime, um aristocrata fanático. Não em louvor da desocupação tediosa, por Deus!, mas em razão da urgente tarefa de fazer algo de mim ...("O importante não é o ´livre de quê´, mas livre pra quê". Não foi Nietzsche quem colocou na boca de Zaratustra essa terrível verdade?)

Isso, ou seja, uma pá a mais de espaço nesse mundo apressado e louco, os anos de teoremas e demonstrações laboriosas puderam me proporcionar. Sempre gostei de considerar minha posição, num laivo de orgulho, como uma reminiscência cultural dos tempos onde eram concedidos privilégios a quem via na busca pelo conhecimento verdadeiro o destino da sua existência. Desnecessário dizer que a caminhada nunca foi movida pelo sonho de ser um "funcionário público". Em realidade, deploro toda a ideologia do "funcionarismo".

Todavia, o meu parêntesis era simplesmente enfatizar que as censuras direcionadas a doutorados inúteis não valem para as matemáticas e ciências exatas em geral. Na matemática, por exemplo, ao contrário de outras áreas, sobram vagas nas universidades, tamanha é a escassez de doutores. Vou mais longe: sem um bom doutorado cursado sob a tutela de cientistas experientes, dificilmente alguém progredirá de estudante promissor a matemático. A explicação resumida é bastante simples. A matemática — bem como a física e a química, embora a rígida abstração da "rainha das ciências" forneça a ela uma configuração especial - está imersa numa longa tradição de provas rigorosas e de métodos particulares extremamente lógicos e necessários. Ela também pode exprimir facetas masturbatórias, sem dúvida; entretanto, devido a sua incurável surdez ideológica, será uma masturbação muito menos comprometedora porque passível de ser eliminada pela maturidade.

Saudações,

Felipe Filho